Curitiba entre a luz e o lixo: a luta das famílias da Ocupação Tiradentes II

Todos na Ocupação Tiradentes II estão ansiosos para que os procedimentos sejam agilizados e possam sair da área o quanto antes, evitando um despejo violento

Em 2023, Curitiba testemunhou a luta de 67 famílias da Ocupação Tiradentes II, na CIC, organizada pelo Movimento Popular por Moradia (MPM), contra um aterro sanitário que exigia juridicamente seu despejo. No mesmo ano, enquanto a atual gestão da prefeitura municipal celebrava como grande feito – e com razão – a conversão do aterro da Caximba em uma usina de energia solar, a batalha da Tiradentes II reacendeu um antigo debate na cidade: a existência do seu último aterro sanitário, administrado pela Essencis Soluções Ambientais.

Muito antes da luta dessas 67 famílias, associações de moradores e organizações da sociedade civil em defesa do meio ambiente já denunciavam inúmeras irregularidades no funcionamento deste aterro sanitário, indícios que deveriam ser esclarecidos à sociedade curitibana. Por exemplo, desde 2010, este aterro de resíduos sólidos e efluentes (chorume) provenientes de lixo perigoso opera sem o devido Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) exigidos por lei, o que já foi alvo de uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público em 2014.

Outro exemplo é que o aterro faz fronteira com a Casa de Custódia de Curitiba, onde várias pessoas cumprem pena sob a responsabilidade do Estado. Além disso, nas proximidades encontra-se o Colégio Bagozzi, cujas dependências, embora não sejam salas de aula, estão a menos de 500 metros do aterro. Também próximos ao aterro estão não apenas as 67 famílias da Tiradentes II, mas os bairros Sabará, São Miguel e Moradias Corbélia, este último construído pela COHAB quando o aterro já funcionava a plenos vapores. Vapores, aliás, que frequentemente entram em combustão espontânea, provocando incêndios de grandes proporções, como ocorreu em 2011, quando o caso ganhou repercussão nacional.

Nos últimos meses, devido ao calor extremo, o lixo da empresa voltou a entrar em combustão espontânea várias vezes, necessitando ser contido. Por último, mas não menos importante, o aterro está localizado do outro lado da rua da Estação de Tratamento de Água (ETA) do Passaúna, da Sanepar, que atende centenas de milhares de curitibanos em outros bairros da cidade. Quem duvidar, que visite o portão da empresa na Rua dos Palmenses, na CIC.

Com todas as externalidades inerentes à atividade da Essencis, a empresa poderia ao menos colaborar com ações socioambientais que mitigassem seus efeitos nocivos na vida das comunidades ao redor, como ajudando cooperativas de catadores da região, já que o lixão não recicla nada, apenas enterra os resíduos. Contudo, o que mais chama atenção é que, mesmo na ação de reintegração de posse contra as famílias da Tiradentes II, a empresa se manteve intransigente até o fim, o que poderia ter contribuído para a ocorrência de um despejo catastrófico e violento, em desrespeito aos valores constitucionais da integridade física e da dignidade da pessoa humana.

Uma ruptura unilateral da negociação por parte da empresa ocorrida no ano passado, entre outras posturas arrogantes, levou as famílias a bloquearem os portões da empresa em 28 de setembro do ano passado por algumas horas, para chamar a atenção das autoridades e da imprensa sobre a injustiça que estavam sofrendo. Vale lembrar que as famílias e o MPM jamais se recusaram a sair da área, mas é tarefa dos movimentos sociais assegurar que, se necessária, a reintegração de posse seja executada com respeito aos direitos humanos, o que raramente acontece em Curitiba, como evidenciado no despejo violento da Ocupação Povo Sem Medo em 10 de janeiro do ano passado.

Como consequência do bloqueio dos portões da empresa e em negociação com a Polícia Militar, que adotou uma postura de não-violência e diálogo na ocasião, as famílias decidiram espontaneamente ocupar as calçadas em frente à empresa, desobstruindo a rua e estabelecendo uma vigília que durou mais de 270 dias.

O protesto pacífico da vigília deu certo, pois graças à sua visibilidade, lideranças da comunidade e do MPM buscaram autoridades que viabilizassem uma saída digna e pacífica. Em conversas com a COHAB, conseguiram a inclusão das famílias em um projeto do Minha Casa Minha Vida, destinado a atender famílias em situação habitacional de risco. Enquanto os apartamentos fossem construídos, as famílias receberiam o benefício do auxílio-aluguel, uma vitória que desagradou a Essencis. Mesmo sendo beneficiada pelo acordo, que previa a desocupação do terreno, a Essencis peticionou nos autos reiterando o pedido de reintegração de posse com reforço policial. Desta vez, o próprio judiciário reconheceu a postura prepotente e intolerante da empresa, concedendo um prazo para que a COHAB e as famílias finalizassem os protocolos de auxílio-moradia, o que tem sido feito desde então. As famílias e o movimento entenderam esgotado o objeto do protesto e desmontaram a vigília diante do que consideraram uma saída digna e razoável, uma vitória das famílias, dos direitos humanos e da democracia.

Todos na Ocupação Tiradentes II estão ansiosos para que os procedimentos sejam agilizados e possam sair da área o quanto antes, evitando um despejo violento. Essa é uma vitória da luta popular por moradia e certamente representa uma mudança positiva na atitude das autoridades em comparação com episódios violentos do passado. No entanto, o que acontecerá com o último aterro sanitário da cidade? Continuará operando apesar de todas as denúncias de irregularidades? Expandirá ainda mais suas atividades sobre o terreno desocupado? Curitiba não merece saber mais sobre a política municipal de resíduos sólidos?

A Política Nacional de Resíduos Sólidos, regulada pela lei 12305/2010 recomenda que todo aterro sanitário apresente um plano de encerramento, para estimular modelos mais sustentáveis de gestão de resíduos no país. Sendo assim, quando a Essencis pretende encerrar suas atividades em Curitiba? A empresa, que existe desde 1997, nunca se manifestou publicamente sobre seu plano de encerramento e a Prefeitura de Curitiba, em uma ação judicial movida pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná, afirmou recentemente que a licença atual da empresa vence em 9 de setembro de 2025. O que acontecerá depois disso? O aterro será selado, ou será concedida outra licença sem o necessário Estudo de Impacto Ambiental?

Neste ano de 2024, os únicos candidatos à prefeitura que ainda não se pronunciaram sobre o assunto são Luciano Ducci, do PSB, e Eduardo Pimentel, do PSD. Todos os outros, de direita ou de esquerda, já se manifestaram sobre o escândalo de Curitiba ter um lixão em frente a uma estação de tratamento de água. Nossa cidade, conhecida nacionalmente por sua consciência ambiental, não pode mais tolerar esse silêncio obsequioso. O exemplo da Caximba deve servir como modelo para toda a gestão de resíduos sólidos da cidade: Curitiba tem sede de luz e de vida!

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