Meritocracia, hipocrisia e naturalização das desigualdades

É preciso tirar as vendas impostas pelos coaches das redes sociais e olhar atentamente à volta: há muitas realidades silenciadas que precisam de muito mais que foco, força e fé

Nos últimos anos, as redes sociais têm ocupado um espaço cada vez mais relevante no ambiente digital. Além de modificarem a forma de comunicação entre as pessoas, tornando-a mais dinâmica e prática, também possibilitaram a produção e compartilhamento de conteúdos por qualquer indivíduo, atingindo muitas vezes milhões de usuários. Se de um lado há aspectos positivos nessa constatação, já que aponta para a popularização/democratização das tecnologias digitais, por outro é preocupante notar que vem tornando o público cada vez mais vulnerável a abordagens superficiais e questionáveis sobre os mais variados assuntos.

A cultura do “coach” é uma demonstração desse fenômeno e do perigoso anti-intelectualismo que ele pode carregar em si. Na rápida dinâmica das redes, brotam todos os dias pretensos especialistas em todo e qualquer tema, desde investimentos financeiros, relacionamentos, nutrição e até mesmo saúde mental. Discursos motivacionais e forjados a partir da divulgação do dia a dia aparentemente perfeito dos “influenciadores” tomam conta do ambiente virtual e atraem cada vez mais público, ainda que muitas vezes falseiem a realidade e ignorem dados acadêmicos ou científicos.

Basta um simples passar de olhos por alguns perfis de “coaches” famosos para notar que operam em uma mesma dinâmica: transformar assuntos complexos e sensíveis em temas facilmente solucionáveis por meio da lógica da autoajuda empreendedora, sempre sob uma perspectiva generalista que silencia e ignora as inúmeras nuances da existência do indivíduo. Além disso, tais “influenciadores” costumam requintar seus discursos com elementos extraídos da religião, das ciências e da filosofia, ainda que de forma rasa, de modo a gerar maior credibilidade perante os seguidores, alavancando a venda de cursos, palestras e livros.

“Trabalhe enquanto eles dormem”; “Quem quer, arruma um jeito. Quem não quer, arruma uma desculpa”. “Grandes batalhas só são dadas a grandes guerreiros”. Essas são frases muito disseminadas em perfis que se dizem motivacionais. Todavia, apesar de aparentemente inofensivas, carregam em si a concepção de que cada indivíduo é o único e exclusivo responsável por seu destino. Basta ter “foco, força e fé”, ainda que o sujeito não saiba sequer se terá dinheiro suficiente para fazer as três refeições básicas do dia.

Nos campos social e econômico, um dos resultados desse discurso é a naturalização e a legitimação, por meio da lógica meritocrática, das assimetrias e disparidades ainda hoje verificadas no seio de uma sociedade profundamente desigual como a brasileira.

 Segundo o dicionário, o termo meritocracia significa a “forma de administração cujos cargos são conquistados segundo o merecimento, em que há o predomínio do conhecimento e da competência.”.[1] Etimologicamente, a palavra tem origem no latim “meritum”, que quer dizer “mérito”, e que se une ao sufixo grego “cracia”, que significa “poder”.

Assim, a meritocracia pode ser definida como o governo daqueles que têm mérito, a dominação daqueles que se destacam, havendo nesse cenário uma preponderância de valores ligados à educação. As posições hierárquicas na sociedade são definidas a partir dos conceitos de competência e merecimento.

Todavia, o que se nota é que o discurso meritocrático, utilizado de forma isolada, não está relacionado a uma sociedade que fornece oportunidades equitativas aos indivíduos, premiando, com base nisso, o esforço dos melhores. A meritocracia, principalmente na lógica difundida nas redes sociais, está ligada a uma ideia de extrema competitividade e concorrência, ocultando-se o privilégio econômico e cultural que recai sobre as classes favorecidas desde o nascimento e que determinam, em grande escala, seu acesso aos bens e recursos escassos – ou a manutenção desse acesso.

Assim, com base na falaciosa proposição de que basta ânimo e talento para se atingir o sucesso financeiro e profissional, já que as chances seriam iguais para todos, aqueles indivíduos que não atingiram os postos desejados são enxergados como merecedores de eventual fracasso por não terem se esforçado o bastante, num perverso processo de naturalização e justificação da pobreza e da miséria.

Segundo Atahualpa Fernandez, “Supostamente vivemos em uma meritocracia perfeita donde aquele que serve, quem é bom, triunfa. Ao menos esta é a mensagem que costumamos ouvir frequentemente no espaço público (e privado): “o que vale” triunfa;  e que os que fracassam é por sua culpa. Essa apelação à meritocracia, diz R. Augusto, é um dos fundamentos ideológicos de nossa sociedade. As diferenças são justas porque espelham distintas capacidades. Os melhores têm mais e os piores, aqueles que fracassam neste regime meritocrático, devem conformar-se com pouco ou nada. Segundo esta imagem, a miséria de muitos é responsabilidade dos perdedores ou fracassados, dos que a sofrem, já que “não servem”. É justo o sofrimento que padecem”.[2] (grifos no original)

No âmbito brasileiro, o sociólogo Jessé Souza, na obra A ralé brasileira: quem é e como vive (2016), reflete que a manutenção da exclusão social de tantos indivíduos, antes ser de resultado da corrupção estatal, é, em verdade, fruto do singular processo histórico nacional, marcado pela naturalização e legitimação das desigualdades. Tal fenômeno, segundo Souza, contribui para que as causas mais profundas da exclusão social sejam desconsideradas por meio de um processo que as reduz à mera lógica da acumulação econômica.

A afirmação de que a sociedade brasileira concede as mesmas oportunidades aos cidadãos equivale a ignorar todos os fatores sociais, emocionais, morais e culturais que os rodeiam, fazendo com que um sujeito marginalizado seja encarado como alguém que possui as mesmas condições de vida daquele que integra as classes média e alta. O processo de naturalização das desigualdades se dá a partir do silenciamento do social e de outras contingências na vida do indivíduo.

Conforme recente pesquisa da revista Forbes e divulgada pelo jornal britânico The Guardian, há no mundo 15 multimilionários com 30 anos de idade ou menos, sendo que nenhum deles teve “foco, força e fé” para a construção de sua riqueza. Ao contrário, todos são herdeiros. O discurso coach meritocrático opera justamente encobrindo tal condição e equiparando esse bilionário herdeiro àquele indivíduo que, por exemplo, nasceu em uma comunidade periférica e depende de três conduções para chegar ao trabalho, já que “com o esforço pessoal tudo pode ser alcançado”.   

Assim, ao enxergar a dedicação como fator decisivo e isolado à ascensão social do cidadão, silencia-se toda a determinação social, moral e cultural responsável pela construção de indivíduos competitivos, aptos a serem inseridos no mercado de trabalho de uma sociedade capitalista. E é a partir dessa visão distorcida de mundo pregada pelo economicismo que os privilégios das classes média e alta são enxergados como mérito individual, enquanto que eventual “fracasso” dos indivíduos das classes marginalizadas é visto como culpa e naturalizado.

Infelizmente, enquanto tal tipo de raciocínio, baseado no falseamento da realidade de exclusão e marginalização vivenciada pelas camadas desfavorecidas, é difundido e legitimado, o que se vê é o fortalecimento de uma ideologia pautada no egoísmo e no individualismo. Nas palavras do então Ministro Marco do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, por ocasião do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186/Distrito Federal, que discutia a implantação do regime de cotas para negros na Universidade de Brasília, “A meritocracia sem “igualdade de pontos de partida” é apenas uma forma velada de aristocracia”.[3] 

O que se coloca, portanto, não é uma crítica ao mérito, mas à adoção irrefletida da meritocracia no seio de uma sociedade profundamente desigual como a brasileira, incapaz de fornecer as mesmas oportunidades aos indivíduos, desprezando o contexto social no qual estão inseridos. 

Raciocínio contrário implica em tornar letra morta os objetivos previstos na Constituição Federal, legitimando-se toda sorte de desigualdade e privilégio em prol da falaciosa crença de que o indivíduo é responsável exclusivo por seu destino. E, à medida em que tal discurso é propagado, a promoção do bem-estar de todos, a erradicação da pobreza e da fome e a redução das desigualdades regionais e sociais, tornam-se mera utopia, cada vez mais distantes dos anseios do constituinte de 1988.

É preciso tirar as vendas impostas pelos coaches das redes sociais e olhar atentamente à volta: há muitas realidades silenciadas que precisam de muito mais que foco, força e fé. E aqui não falamos em favor ou esmola, mas em cumprimento dos objetivos da Constituição Federal na busca por uma sociedade mais livre, justa e solidária.


[1] Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=meritocracia

[2] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/meritocracia-e-desigualdade-parte-1

[3] Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186MMA.pdf

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