Pela primeira vez na história, Paraná elege uma mulher indígena

Reportagem publicada originalmente na Rede Lume A pedagoga Flávia Kaingang, de 29 anos, acaba de entrar para a história como a primeira vereadora indígena eleita no Paraná. Natural da Terra Indígena de São Jerônimo, no município de São Jerônimo da […]

Reportagem publicada originalmente na Rede Lume

A pedagoga Flávia Kaingang, de 29 anos, acaba de entrar para a história como a primeira vereadora indígena eleita no Paraná. Natural da Terra Indígena de São Jerônimo, no município de São Jerônimo da Serra, norte do Estado, ela recebeu 298 votos na eleição do último domingo e, a partir de 2025, vai ocupar uma das nove cadeiras da Câmara na cidade de cerca de 11 mil habitantes.

O feito acontece quase 50 anos após a eleição do primeiro vereador indígena no Paraná – Ângelo Kretã, eleito em 1976, em Mangueirinha, Sudoeste do Estado, num contexto político totalmente diferente do atual – e reflete a busca crescente das mulheres indígenas por protagonismo nos espaços políticos.

“Fiz a campanha sem um centavo. Aqui na cidade eu estou passando e o pessoal bate palmas, foi uma surpresa geral. Ainda estou absorvendo tudo”, diz Flávia à Rede Lume. Segundo ela, a ascensão da chamada bancada do cocar, que assumiu no Congresso Nacional em 2023, representou um marco e uma inspiração para a luta, que já era antiga.

“É muito difícil por ser mulher, porque são espaços de poder que, dentro das comunidades, são ocupados por homens, que são caciques e lideranças indígenas”, explica.

Trajetória

Filiada ao Partido da Renovação Democrática (PRD), Flávia está envolvida em movimentos sociais desde os 14 anos. Participa de lutas históricas dos povos indígenas, como o Acampamento Terra Livre, promovido anualmente em Brasília. Desde os 16 anos mora na cidade, fora da TI, mas mantém sua ligação com o território, onde vivem seus irmãos e sua mãe. Tanto que, após a formatura em pedagogia, foi dar aulas na escola na aldeia.

“Como professora, vi que muita coisa precisava mudar dentro do território. Sempre me coloquei, sempre fui a voz dos professores dentro da escola. E aí pensei ‘Não é só isso. A gente não tem que ficar brigando entre si, porque tem políticas que a gente precisa alcançar fora do território’”, comenta.

Em 2020 veio o primeiro convite para uma candidatura a vereadora, que ela aceitou com condições. “Quando eu disse para o prefeito (Venicius Rosa, do Republicanos) que aceitava ser candidata, aliada à candidatura dele, disse que queria espaço para a população indígena dentro da prefeitura. Ele foi eleito e cumpriu: criou duas diretorias e me convidou para trabalhar como diretora de cultura indígena”, conta Flávia.

Nos três anos em que exerceu a função de diretora, Flávia diz que obteve várias conquistas. “Foi a gestão que mais deu voz (aos povos indígenas). Nunca tivemos antes uma sala para a gente dentro da prefeitura; conseguimos levar quadra para a aldeia, reforma do postinho, do salão comunitário. Os eventos culturais a gente conseguiu participar, foi muito bom. Isso deu uma força para eu continuar na política. Se a gente conseguiu isso sendo somente diretoria, imagine agora como parlamentar”, prevê a pedagoga.

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Luta coletiva das mulheres

Flávia faz questão de destacar que é filha da Kaingang Ednéia, mãe solo de quatro filhos. Ednéia também foi criada pela mãe, um quase matriarcado que moldou a personalidade da vereadora eleita e também de sua irmã, que tem atuado politicamente em outros espaços.

“Eu nunca tive a presença da voz masculina desde pequena, mas não precisou ter isso para eu ser quem eu sou. As mulheres não precisam dos homens. Tem uma parceria, mas a gente não precisa deles para construir o que a gente é, chegar onde a gente quer”, conclui.

Sua candidatura não atraiu apoio de muitas lideranças, mas mobilizou as mulheres. “As mulheres foram potentes”, afirma Flávia. Segundo ela, São Jerônimo era conhecida como “a cidade do Gaeco”, “com muitos prefeitos cassados, a cidade parou. Hoje deu uma mudança total”, garante, explicando sua confiança no atual prefeito.

Flávia se mostra emocionada com a conquista histórica e diz que pretende construir um mandato coletivo. “Se perguntar se eu tenho um projeto já, eu não tenho. A gente conhece as demandas das mulheres, mas eu quero ouvi-las. Porque muitas pessoas levam os projetos para as comunidades já prontos, e eu quero construir com elas, para a comunidade se sentir parte disso. Nós vamos construir dentro para trazer para fora, e vamos levantar recursos para colocar em prática”, explica a vereadora eleita.

Ela aponta como demanda latente das mulheres indígenas políticas de geração de emprego dentro dos territórios. Já o caminho para viabilizar isso, a vereadora eleita admite que precisa conhecer.

“Eu preciso de uma formação para mim mesma, porque é um espaço novo. Eu conheço a política de dentro do meu território, mas não conheça essa política de fora ainda. Preciso aprender, preciso estudar”, reconhece. “Porque eu vou colocar todas as expectativas, promessas, e não levar nada? Estamos cansadas disso”.

“Mudança profunda”

Para a Associação das Mulheres Indígenas Organizadas em Rede (Amior), a eleição de Flávia é histórica e marca “uma mudança profunda”.

“Ela traz para o debate político as questões que tocam diretamente as comunidades indígenas. Além disso, sua vitória reforça a importância da interseccionalidade nas lutas feministas, mostrando que a mulher indígena carrega, além das questões de gênero, as dores e os desafios do racismo, do etnocentrismo e da discriminação histórica.”

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