O rico mundo dos concursos públicos e a necessária democratização do acesso ao serviço público

Para se preparar para as vagas mais concorridas, que chegaram a ter mais de 14.000 candidatos disputando uma vaga, é preciso muito tempo e dinheiro

Há cerca de um mês o presidente Lula sancionou uma “Lei dos Concursos Públicos”. A lei veio sem muitas novidades, apenas regulamentando e dando segurança jurídica para muitas coisas que já eram práticas correntes nas seleções de servidores e empregados públicos no plano federal. Duas novidades são a possibilidade de se fazer concursos via internet, algo que ainda deve demorar para acontecer com as tecnologias atuais, e a possibilidade de entrevistas como etapa eliminatória dos concursos. Mas, como essa lei não traz grandes novidades, eu tomo a publicação dela apenas como pretexto para um primeiro assunto que quero tratar na coluna sobre o setor público que inicio nestr jornal de que tanto gosto.

Depois de 4 anos de trevas para o serviço público federal, o atual governo começou um ainda tímido movimento de reconstituição daquilo que em administração pública chamamos de capacidades estatais. Parte essencial—talvez a mais essencial—das capacidades estatais é a constituída pelos servidores e empregados públicos que tocam desde as decisões de alto escalão até o atendimento dos cidadãos na ponta das políticas públicas. No Brasil, faz tempo que essa força de trabalho é selecionada através desses “vestibulares do emprego”, os famosos concursos públicos. Já vi pesquisas que dão conta que o número de pessoas que estudam para concursos públicos varia entre três e cinco milhões. É muita gente, e é muito mercado para ser aproveitado.

Justamente porque é muito mercado, dezenas, ou possivelmente centenas de empresas e milhares de pessoas exploram esse filão de dinheiro. São desde cursinhos muito bem estruturados até professores particulares, pequenas escolas, escritórios de advocacia e de recursos, websites de treino por questões, vendedores de resumos e um monte de youtubers, coaches, mentores, psicólogos e por aí vai. Há dois anos, um dos mais famosos cursinhos, o Gran Cursos, comprou uma faculdade curitibana, para aumentar mais ainda o grande negócio que iniciaram nesse ramo do acesso ao serviço público. Outra empresa que é provavelmente o maior dos cursinhos, o Estratégia, é de propriedade de um fundo de private equity, o que quer dizer que investidores vêm potencial de grandes lucros ali.

Esse enorme mercado, seus custos para aqueles que sonham com uma vaga e os grandes lucros gerados contrastam com as intenções recentes do governo federal de democratizar o acesso ao serviço público. Em um país que a economia está acostumada aos famosos “voos de galinha”, ou seja, a constantes altos e baixos, a estabilidade, os bons salários, os horários de trabalho decentes e férias bem certinhas são um atrativo incrível. Porém, como os concursos, principalmente aqueles para os cargos com melhores remunerações, são muito competitivos, o investimento para conquistar uma vaga é bastante alto. Como se não bastasse o investimento de tempo, as anuidades dos cursinhos chegam a custar até três ou quatro mil reais. E tem os serviços de mentoria, de psicologia, de material de revisão, de recursos, de advogados, etc.

Será, então, que o governo federal vai conseguir democratizar o acesso ao serviço público? Será que teremos melhorias naquilo que se chama de “serviço público representativo”, isto é, um funcionalismo com mais pretos e pardos, indígenas, mulheres e outras minorias em cargos de alta remuneração? Essa foi a proposta do recente Concurso Nacional Unificado, que levou um concurso com quase 7.000 vagas para cidades que nunca tiveram provas e no qual com apenas uma taxa de inscrição os candidatos podiam concorrer a até quase 2.000 vagas de uma vez. A proposta é muito boa, mas como bom economista, membro dessa ciência que no século XIX já era chamada de “a ciência sombria”, eu sou muito cético.

O fato é que para se preparar para as vagas mais concorridas, que chegaram a ter mais de 14.000 candidatos disputando uma vaga, é preciso muito tempo e dinheiro (e tempo é dinheiro, já diz o conhecimento popular). Algumas das vagas oferecem salários iniciais acima de R$ 22.000,00, o que faz com que pessoas se dediquem durante anos a fio, muitas vezes sem trabalhar, para fazer uma prova naquele um dia decisivo. Não duvido que o custo de uma preparação de anos chegue a custar na casa das dezenas de milhares de reais. Isso sem contar a renda que a pessoa deixa de auferir e gerar durante a preparação. Modestamente, prevejo que, ainda que marginalmente um concurso como esse unificado possa mudar um pouco o perfil selecionado, continuaremos a ter as pessoas que têm mais recursos ocupando as vagas mais preciosas, com os melhores salários.

Por isso eu acho que a proposta do governo federal, apesar de salutar, é tímida. Também eu acho que cotas sociais, como existem nas universidades públicas, em concursos públicos são impraticáveis e talvez até contraproducentes. Apesar de que cotas para minorias são sim praticadas e efetivas, e recentemente o governo até aumentou o percentual de cotas para pretos, pardos, indígenas e quilombolas. Contudo, na minha opinião, políticas públicas no sentido de democratizar o acesso precisariam agir na preparação dos candidatos que não podem pagar grandes cursinhos, oferecendo, talvez bolsas, mas principalmente educação preparatória. Escolas de governo e universidades públicas poderiam ser utilizadas para democratizar o acesso a materiais de qualidade, orientação, treinamento e outras ferramentas que aqueles que têm mais recursos podem pagar. Aliás, isso teria a vantagem inclusive do próprio setor público dar o tom do tipo de preparação que exige dos candidatos. Temas como direitos humanos, ética, democracia, participação popular poderiam ser enfatizados, e a produção acadêmica dos pesquisadores desses tópicos poderia ser conteúdo dos editais de seleção.

Outras políticas que seriam interessantes no meu ver. Por exemplo, cursos de formação que realmente sejam fase eliminatória, pois hoje quase todo mundo ou todo mundo passa nessas formações. Desse modo, os candidatos aprovados para esse curso teriam uma base educacional em certa medida mais equitativa, ainda que não se possa resolver eventuais falhas na qualidade passada da educação das pessoas. Ainda, períodos de experiência—os chamados estágios probatórios—mais longos e que realmente testem as competências, habilidades e atitudes dos servidores e empregados públicos, eliminando aqueles que só estão em busca de salário e estabilidade, poderia fazer um serviço público mais eficiente, efetivo e equitativo.

Enfim, embora tenhamos que reconhecer as recentes tentativas de democratizar o acesso ao serviço público, muito precisa ainda ser feito. É difícil colocar em prática políticas como as sugeridas nesse cenário da doutrina do aperto fiscal a todo custo. Mas fazer políticas públicas é fazer escolhas, e reconstituir o serviço público é algo que deve ser prioritário, ainda mais sob a ameaça da volta de outro período da cartilha do quanto menos, melhor. E tem mais, em políticas públicas, quando se faz algo que tem apelo popular, mesmo para os governos mais destruidores fica difícil justificar para a população e implementar retrocessos. Por isso eu acho que agora seria a hora para o governo federal—e quiçá outros governos subnacionais—aprofundarem a política de democratização de acesso ao serviço público.

Logo, nesta coluna, voltarei ao assunto de porque um serviço público forte e, mais do que isso, diverso e equitativo é algo muito importante. 

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima