A política para além do jardim de infância

Numa cidade como a nossa, pensar em acordos pequenos, com dimensões modestas, com objetivos conjunturais, com perspectivas tímidas mas reais, é o que podemos faze

O bolsonarismo emergiu em face de uma crise de legitimidade da promessa de Estado de Bem Estar-pelas gestões FHC e Lula/Dilma. Depois da decolagem do Brasil, alimentada pelo combustível das commodities – como na imagem do Cristo/foguete da revista The Economist – e do descolamento para a faixa “classe média” de milhões de até então remediados, que antes roíam a espiga de milho e agora deixavam cair o iogurte no chão, o céu do consumo e dos serviços bem prestados era o limite. Ninguém mais queria ficar em fila, ninguém mais queria andar de ônibus interestadual, ninguém mais queria remendar os fundilhos das calças. Lula, o “comunista”, ao lado do seu Sancho Pança, o empresário José de Alencar, prometia geladeiras e fogões, celulares e viagens para a Disney para todos e todas.

Pouca gente captou tão bem essas mudanças e, ao mesmo tempo, o esgar e ranger de dentes da classe média “tradicional”, como Anna Muyalert no seu “Que horas ela volta?”. A empregada, típica serviçal a La Boétie, e sua filha, iconoclasta dos valores e padrões sociais estabelecidos, travam um conflito conceitual diante da perplexidade dos patrões, particularmente da patroa e de seu filho piá de prédio.

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Mas nem tudo foi a festa do Brasil potência . A “marola” da crise internacional finalmente chegou ao país e era hora (mais uma vez) de apertar os cintos. Além disso, o governo Dilma estava longe do jogo de cintura e do carisma do velho sapo barbudo, capaz de escapar do mensalão e ser reeleito, além de conseguir eleger a ex-guerrilheira. A realidade de cobertor curto da economia incomodava os setores da Casa Grande e proximidades, principalmente diante da insistência do PT em dar mais benefícios para os ex-pobres ou quase pobres: era cota pra negros, terra pra índio, era bolsa família, era vale gás, era ciência sem fronteira, era mais médicos, era empréstimo consignado para aposentados, era universidade federal no interior, e era orçamento participativo, era discurso de igualdade racial, era a emergência das questões de gênero, e tantas outras demandas reprimidas secularmente à espera por um pouco de Democracia.

Daí veio 2013 e tudo desandou, com aqueles milhões de pessoas nas ruas,  porque o governo Dilma não entendeu nada e quando percebeu, estava engolida pelo seu vice e pelo presidente da Câmara. O que era para ser a nossa primavera árabe, foi o golpe de misericórdia contra o Partido dos Trabalhadores do país que queriam empreender, enriquecer e ir pra Disney, como o grande líder havia prometido; mas agora não se conseguia mais entregar o prometido, e só o que se entregava eram estádios de futebol, tenebrosas transações e pedaladas fiscais. Eis o risco de querer ter o que se deseja: os brasileiros se acharam enganados porque nada do que havia sido prometido aqui tinha exatamente um padrão FIFA, e a real é que estávamos levando um 7 a 1 das ruas sem saber como reagir.

Da ressaca das manifestações emergiu o fundo lamacento do ressentimento mais vil: a nostalgia do tempo que nunca existiu, onde havia ordem, disciplina, tudo funcionava e os vagabundos não se criavam. E um deputado nanico e insignificante, ex-capitão que nem o Exército aguentou, tornou-se o guia e mestre desse novo (sic) tempo.

Mas, o que tudo isso tem a ver com o segundo turno da eleição municipal de Curitiba? Tudo. Nós, que vivemos esses anos tumultuados e ainda os tempos da redemocratização, nos idos de oitenta, sabemos que toda essa bipolarização não passa da mesma coisa de forma diferente: luta por espaços na máquina pública e suas benesses; luta por agendas que favoreçam interesses de seus grupos, para o uso dos recursos do Estado; luta por cooptação da opinião pública, criando narrativas capazes de fidelizar eleitores e garantir lugares nos cargos que permitem comissionar os amigos e aliados. Lógico que o que surpreende nos tempos atuais é a perda do verniz de civilidade que chegou a caracterizar as disputas anteriores. Como lembrou recentemente o Lula: “que saudade de discutir com o Paulo Maluf!” É fato, o jogo ficou mais duro, mais movido pela lógica amigo-inimigo que muitas vezes sai do campo do agonismo para o do pugilato, mas, apesar disso, continua a ser, não deixou de ser um jogo deliberativo, no qual há sempre espaços para acertos e acordos, sem o propósito de um fim comum, mas sim o de encontrar uma circunstância possível para realizar algo. Como lembrou um mestre dos enfrentamentos e dos acordos, Ulisses Guimarães, “não se pode fazer Política com o fígado”. Ou como disse sobre a questão palestina o escritor Amos Oz: “É preciso Paz, mesmo que sem Amor.”

Pois bem: como sabemos, Curitiba abraçou o bolsonarismo com grande entusiasmo. Nenhuma novidade para a cidade que deu mais votos para Plínio Salgado nas eleições de 55 e para Guilherme Afif Domingos nas eleições de 1989. Curitiba é uma cidade conservadora. Por isso o PT abriu mão de lançar um candidato. Não indicou nem o vice. Ducci, deputado que votou pelo impedimento da Dilma, era a chance não da “esquerda” no poder, mas de uma pauta mais arejada na administração municipal, que permitisse sobrar alguma verba e algum projeto que atendesse as sérias demandas dos bairros invisíveis da cidade. Assim como aconteceu na administração Fruet, que acabou como prefeito de um mandato só, apesar do trabalho extraordinário que fez na Educação, por exemplo. Ou seja, quem conhece a história desse país sabe que a luta por recursos para os setores mais pobres é como briga pela xepa da feira: é pouco, é difícil e exige muito desprendimento.

Mas a bipolarização vem obnubilando a capacidade de análise do pessoal da esquerda. Parece que a coisa ficou, digamos assim, pessoal. Como uma briga. Coisa de pátio de escola, tipo “é tua mãe, é a tua!”, ao invés de uma busca do possível em termos de espaço restrito na esfera de poder. Lula deu a régua e o compasso ao aliar-se com o antigo adversário, Alckmin  ( o picolé de chuchu) e , igualmente, flertar com Lira, beijar a mão de Sarney, abraçar Collor, dar acenos discretos para o Edir. “Um encantador de serpentes”, disse Ciro. Lula sabe como funciona o jogo do poder, onde o que importa é ter acesso aos cargos e aos recursos. E com eles fazer política para os mais pobres.

Em Curitiba, a jogada com o Ducci não deu certo, em boa parte porque nossa esquerda raiz fez biquinho e recusou-se a entrar de cabeça na campanha do candidato. Numa espécie de remake do “quanto pior, melhor”, agora recusa-se a fazer a escolha óbvia no segundo turno, entre o cara que já tava aí e com quem ainda dá pra conversar e a mulher outsider, negacionista e kamikase. Como criança birrenta, parte da esquerda raiz acha que, se a cidade ficar bem ruim, vai valer a pena porque então ela vai poder dizer: “eu não disse?”.

O bolsonarismo, com seu discurso “antissistema” é a infância burra da Política, porque não percebe que se alguém é antissistema, no exato momento em que for eleito, torna-se parte do sistema. A esquerda raiz é a infância birrenta da Política, porque acha que quando tudo ficar ainda pior, vai poder curtir o breve gozo do “eu falei”.

Precisamos sair do jardim de infância e voltar a pensar a Política com os óculos do possível e do viável. Numa cidade como a nossa, pensar em acordos pequenos, com dimensões modestas, com objetivos conjunturais, com perspectivas tímidas mas reais, é o que podemos fazer, ou deveríamos fazer nesse momento. E para isso precisamos de uma administração na qual haja a chance, mesmo que chancezinha, de algum diálogo.

Ou seja: se, ao invés de ficar neutro do segundo turno, como se a cidade não lhes dissesse mais respeito, Ducci e Goura tivessem negociado seus quase 20% de votos em troca das secretárias da Saúde e do Meio Ambiente com o Pimentel, ou pelo menos alguma ingerência nessas pastas, Curitiba certamente ganharia. O biquinho teimoso deles e de parte da esquerda raiz diante das possibilidades de definir uma governo menos burro para Curitiba ainda pode vir a fazer dessa cidade uma Hungria. Ou pior. Um Irã.

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