Assim como no Brasil, jornalistas franceses relatam ameaças e constrangimentos impostos pela extrema direita a veículos progressistas no país

Temática foi discutida durante evento do Instituto de Jornalismo de Bordeaux Aquitânia (IJBA)

A França tem enfrentado, nos últimos anos, um recrudescimento do pensamento de extrema direita e um aumento da aceitação do discurso de ódio na sociedade. xenofobia, homofobia, ódio aos muçulmanos e crescimento das ameaças contra jornalistas são alguns dos problemas em um país conhecido por ter dado origem aos direitos humanos, que em sua história moderna sempre acolheu a diversidade de pensamento e que tem o diálogo enraizado em sua cultura. No entanto, nos últimos dez anos, a situação tem se tornado particularmente difícil, com a ascensão da extrema direita, representada pelo partido Rassemblement National (RN), cuja participação tem crescido a cada eleição.

Nas eleições legislativas deste ano, antecipadas após o presidente Emmanuel Macron dissolver a Assembleia Nacional em 9 de junho devido à derrota de seu partido nas eleições do parlamento da União Europeia, o RN só não obteve a maioria dos votos porque forças da esquerda (Nova Frente Popular) conquistaram o primeiro lugar por uma margem apertada (182 assentos), contra 168 do partido governista e 143 conquistados pelo RN.

Mesmo assim, o novo governo, liderado pelo primeiro-ministro Michel Barnier, desagradou tanto à esquerda quanto à extrema direita, que tem trabalhado em conjunto para enfraquecer suas ações. O RN também tem atacado jornalistas. Conforme relata o professor e pesquisador Florian Tixier (Universidade de Lille), durante a campanha eleitoral de junho, o número de agressões contra profissionais da imprensa quadruplicou, com 22 ataques registrados e 32 incidentes durante os outros meses do ano.

Perseguição e constrangimento

“Isso coloca a França como o quinto país europeu mais perigoso para jornalistas, com um aumento notável das intimidações verbais, sobretudo nas redes sociais. A campanha legislativa antecipada ocorreu em um momento em que essas ameaças estavam em alta, em especial com agressões de caráter xenófobo”, afirmou ele, em um debate sobre a cobertura das eleições legislativas promovido recentemente pelo Instituto de Jornalismo de Bordeaux Aquitânia (IJBA), ligado à UBM. O debate foi apresentado por ele e pela professora e pesquisadora Maria Santos Saenz, do IJBA.

Tixier descreveu como essa escalada de agressões reflete a tensão social e política no país, agravada pela polarização e pela cobertura tendenciosa de alguns veículos. A discussão trouxe à tona a necessidade de criar estratégias para garantir que os profissionais de imprensa possam exercer sua função de informar sem medo de represálias. Para denunciar a situação, um manifesto foi publicado no jornal L’Humanité, relatando o aumento das ameaças e ataques contra jornalistas, que visam silenciar a imprensa, incluindo até uma lista de alvos divulgada por um site russo de extrema direita.

Uma das jornalistas ameaçadas que estava na lista foi Nora Hamadi, produtora do programa “Douce France”, da rádio pública France Culture, e comentarista da área de política com participação em diversos canais franceses. Oriunda de uma família de imigrantes argelinos e tendo crescido na periferia de Paris, Nora foi uma das convidadas do debate promovido pelo IJBA. Ela afirmou que o ambiente de precarização no jornalismo tem dificultado a criação de narrativas alternativas que possam desafiar a crescente influência da extrema direita. Ela observou que questões raciais e de identidade também influenciam como certos temas são abordados na mídia, contribuindo para a invisibilização de grupos minoritários.

Segundo Nora, o problema reside na razão pela qual os veículos de jornalismo públicos são atacados. A França conta com canais que total ou parcialmente financiados pelo Estado, tais como Arte TV, Radio France Culture, Radio France Inter, TV5Monde, Radio France International, France Télévisions, entre outros. Ela explicou que, frequentemente, os jornalistas que trabalham nesses veículos, considerados mais progressistas que a imprensa comercial, são rotulados de “islamo-esquerdistas” ou “esquerdistas radicais”, o que deslegitima seu esforço para abordar questões relacionadas à direita e à extrema direita.

Nora destacou que os jornalistas enfrentam um desafio complexo ao abordar temas relacionados à extrema direita, especialmente diante do discurso de ódio propagado por esses grupos. Segundo ela, o problema central está no posicionamento dos profissionais da imprensa ao tratar de questões sensíveis, como imigração, identidade e diversidade. Os jornalistas são constantemente colocados em uma situação delicada, em que precisam lidar com a pressão para incluir a extrema direita no debate público, mesmo quando esses grupos promovem retóricas de ódio.

Cobertura das eleições na era das fake news será desafio para jornalistas

Ela questiona como os jornalistas podem falar sobre temas ligados à extrema direita sem, ao mesmo tempo, amplificar ou legitimar seus discursos. Além disso, o fato de que a mídia frequentemente convida representantes da extrema direita para debates públicos cria um dilema: a presença dessas vozes pode dar a impressão de que suas posições são válidas ou merecem espaço no diálogo democrático. Isso dificulta que jornalistas progressistas e moderados possam controlar o rumo das discussões e combater essas agendas, especialmente quando os temas de identidade, raça, e nacionalismo são usados de forma manipuladora pela extrema direita para fortalecer suas bases.

O ponto central que Nora aborda é a complexidade de combater narrativas de ódio em um ambiente midiático que exige pluralidade de vozes, mas que, ao mesmo tempo, pode ser instrumentalizado por discursos extremistas. Isso leva à reflexão sobre estratégias eficazes para que jornalistas possam desafiar essas ideias sem cair na armadilha de legitimá-las ou dar-lhes mais visibilidade do que deveriam receber.

Ela frisou a importância de os jornalistas continuarem resistindo à pressão da extrema direita e mantendo seu compromisso com a verdade e a justiça social. “Quando temos o privilégio de falar em espaços públicos, é nosso dever dar voz aos invisibilizados”, afirmou Hamadi, destacando a necessidade de criar um jornalismo mais próximo das comunidades que sofrem com a exclusão midiática.

Sensacionalismo em alta

Também participando do debate como convidado, o professor e pesquisador Nicolas Kaciaf, da Universidade de Lille, relatou que existe um avanço de ideias reacionárias na imprensa francesa nas últimas décadas, tendo se acentuado nos últimos dez anos. Segundo ele, por um lado, há uma mudança no padrão das notícias e na forma de sua veiculação, valorizando aspectos sensacionalistas. “As imposições midiáticas da extrema direita e de suas organizações incluem a ênfase em notícias sensacionalistas, que é uma verdadeira máquina de guerra do Grupo Bolloré”, relatou ele, referindo-se ao grupo empresarial que é um dos maiores da França e que tem dado destaque a investimentos na imprensa de extrema direita.

Kaciaf conta que esse efeito teve origem, na França, nos anos 1990, quando o canal de notícias TF1 foi privatizado, e uma nova fórmula de hierarquização da informação foi criada, dando espaço para temas locais e relacionados ao sensacionalismo. Essa abordagem tornou-se hegemônica em termos de audiência. Esse mecanismo ganhou popularidade desde o início da década de 2010, sendo adotado como a principal fórmula pelos veículos de extrema direita.

O pesquisador cita como exemplo a capitalização em torno de um tema importante para a sociedade, mas de forma sensacionalista, o chamado Affaire Philippine, que se refere ao assassinato de uma estudante de 19 anos cujo corpo foi encontrado em setembro no Bois de Boulogne, em Paris. O caso causou comoção pública e polarizou o debate político, pois o principal suspeito é um jovem de 22 anos de origem marroquina, que já havia sido condenado por estupro em 2019 e estava sob ordem de deixar o território francês.

Ivan Mizanzuk e a injustiça com uma geração de jornalistas

O crime reacendeu discussões sobre feminicídios, imigração e a eficiência do sistema judicial francês. Enquanto feministas e políticos de esquerda pedem que o foco esteja nas questões de violência de gênero, alguns setores da direita e da extrema direita apontam para falhas na política de deportação e segurança pública.

“Em três dias, esta tornou-se a principal notícia em vários meios de comunicação, mesmo havendo outras informações. Toda a máquina de guerra política entra em ação e se conecta a isso. Todos reagem a essa notícia, criando ciclos que saturam o espaço midiático, especialmente em temas sensíveis, como os defendidos pelos movimentos feministas. No entanto, ocorrem vários feminicídios por ano, e este recebeu uma atenção midiática muito maior do que a maioria dos feminicídios comuns, que não têm o mesmo impacto político nem se encaixam no enquadramento definido pela mídia de extrema direita”, relata Kaciaf.

Cordão sanitário

A capacidade da extrema direita de capitalizar os fatos do cotidiano a seu favor é destacada por Nora Hamadi, que ressaltou a dificuldade de se fazer uma abordagem progressista que esclareça o público sobre as reais dimensões dos problemas do país e crie formas de contradizer as informações falsas veiculadas por agentes políticos da extrema direita, sobretudo em programas ao vivo, que dificultam a exposição do contraditório.

Para ela, as pessoas que são alvo da extrema direita, como imigrantes e pessoas pobres que moram na periferia das grandes cidades da França, acabam sendo retratadas de forma estereotipada. Elas são focadas nas notícias apenas quando estão envolvidas em problemas relacionados à religião, violência, consumo de drogas entre jovens e revoltas. Para a jornalista, a imprensa francesa reproduz muito o perfil hierarquizado da sociedade, em que os principais jornalistas e editorialistas provêm de classes abastadas e não têm contato direto com a periferia. “Eu sou a única jornalista não branca na redação da France Culture”, revela.

O pesquisador Nicolas Kaciaf afirma que os profissionais no topo das redações têm um duplo privilégio: além de opinarem sobre os acontecimentos, eles também lideram as equipes editoriais, influenciando a escolha dos temas, ângulos das matérias e fontes. “Essas elites jornalísticas são selecionadas com base em filtros sociais que as conectam com outras elites – políticas, econômicas, sociais e administrativas. Essa proximidade influencia a forma como elas veem o mundo e, consequentemente, como conduzem suas equipes na seleção e hierarquização das notícias”, completa.

Aline Reis, do Plural, é eleita presidente do Sindicato dos Jornalistas do Paraná

Como enfrentar as ameaças e o avanço da extrema-direita? Para Nora Hamadi, a resposta está na necessidade de ocupar os espaços da mídia para poder contradizer as ideias racistas e xenofóbicas que estão em circulação. Para isso, os jornalistas devem participar de debates em veículos onde esse debate ainda seja possível.

Já o pesquisador Nicolas Kaciaf fez referência a uma medida que foi tomada na região de Wallonie, na Bélgica, onde existe um “cordão sanitário”, que isola a extrema-direita dos principais canais de mídia, levando em conta os aspectos éticos da informação e do compromisso com a verdade dos fatos. Esse bloqueio, segundo ele, reduziu a visibilidade e o impacto eleitoral desses grupos, levantando a questão quanto à possibilidade de tal abordagem ser adotada na França.

Assim como Nora Hamadi, ele disse que o futuro do jornalismo depende de uma reaproximação com o público, especialmente em um momento em que a confiança na imprensa está em crise. Com um ambiente midiático cada vez mais complexo, os jornalistas enfrentam a tarefa de restaurar a credibilidade da profissão e, ao mesmo tempo, proteger os valores democráticos que ela representa.

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