Taxação de livros pode aprofundar desigualdade do saber no Brasil

Nova reforma prevê o fim da imunidade tributária; governo argumenta que apenas ricos leem

Colaborou Mayala Fernandes

O setor livreiro vive momentos de apreensão desde que a primeira parte da Reforma Tributária foi enviada ao Congresso Nacional. O motivo é a nova proposta do governo, a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), que abre caminho para o fim da isenção de impostos sobre livros e prevê tributação de 12%.

Em novo documento divulgado pela Receita Federal, na última terça-feira (6), o órgão utiliza a argumentação de que apenas os brasileiros mais ricos consomem livros não didáticos. Portanto, a isenção tributária estaria beneficiando somente essa faixa da população e, por isso, poderia ser revista.

A justificativa da Receita aparece no documento de perguntas e respostas sobre a Reforma Tributária e utiliza como base a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), levantamento anual publicado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). “De acordo com os dados da POF, famílias com renda de até 2 salários mínimos não consomem livros não-didáticos e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários mínimos”, defende o órgão no documento.

Em contrapartida a essa afirmação, os números do levantamento Retratos da Leitura no Brasil, realizado pelo Instituto Pró Livro em parceria com o Itaú Cultural, mostram um cenário preocupante: de 2015 para 2019, a porcentagem de leitores no Brasil caiu de 56% para 52%. A maior queda foi observada justamente entre a classe A, na qual o percentual de leitores passou de 76% para 67%.

Além disso, a pesquisa também revela que 27 milhões de pessoas das classes C, D e E confirmam a vontade de ler mais. Contudo, o baixo poder aquisitivo não permite que os livros sejam acessíveis para essas camadas da população. Segundo a consulta, 5% dos leitores e 1% dos não leitores argumentaram não ter lido mais porque os livros são caros. Outros 7% dos leitores e 2% dos não leitores disseram não ler porque não há bibliotecas próximas.

De acordo com Thiago Tizzot, responsável pela editora e livraria Arte e Letra, o argumento de que só os ricos leem é completamente contrário ao cenário observado hoje. “Cada vez mais o livro entra nas classes que têm menos poder aquisitivo e não só como leitura, também tem surgido muitos autores e editoras nas periferias, justamente porque existe essa necessidade”, comenta Thiago.

“É bem mais raro você encontrar um rico que lê. Rico lê vitrine, quem lê livro são os pobre”, afirma Sálvio NienKotter, editor na Kotter, para ele o argumento da Receita é um absurdo e só mostra a ignorância do governo. “A gente não cansa de receber pedidos para parcelar um único livro, são pessoas que não têm condições mas que querem muito ler. É revoltante usarem esse argumento”, acrescenta o editor. 

Entenda a taxação 

Em junho do ano passado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, encaminhou ao Congresso Nacional a primeira parte da proposta de reforma tributária. O documento prevê a tributação do livro através da unificação do Programa de Integração Social (PIS) e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) pela Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS).

Contudo, os livros são isentos de impostos desde a Constituição de 1946, imunidade que foi mantida na Constituição de 1988 — a regra não se estende às contribuições. No ano de 2004, o mercado editorial também foi desonerado do PIS e Cofins, que, de acordo com a proposta do governo, seria substituído pela CBS.

A reforma permitiria, então, que os livros fossem sujeitos à tributação, sob alíquota de 12%. Segundo o advogado especialista em Direito Público, Milton Rocha, a Constituição Federal veda a instituição de impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à impressão, entretanto, a ideia do ministro Paulo Guedes é cobrar a contribuição sobre livros, o que não é vedado pelo texto constitucional. 

No entanto, a taxação dos livros impacta diretamente o setor livreiro e, principalmente, o leitor comum. Afinal, a proposta pode tornar o produto mais caro e, consequentemente, limitar o acesso à leitura. De acordo com cálculos realizados pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), a CBS representaria cerca de 60% do lucro de uma editora e 50% do lucro de uma livraria.

“O impacto da taxação dos livros é gigante, porque vai afetar toda uma cadeia, os autores, as gráficas, as distribuidoras. Então, não tem o que fazer, esse valor vai precisar ser repassado para o consumidor”, comenta Alessandro Andreola, responsável pela Editora Barbante.

Para o advogado em Direito Público, Bruno Rodrigues Zanello, a proposta é uma manobra do governo federal para deslocar o eixo do real debate sobre a reforma tributária. “O governo poderia efetivar tributos já previstos na Constituição, como o imposto sobre grandes fortunas. A retirada da isenção dos livros parece uma represália de um governo que não tem afeição pelo conhecimento”, completa o advogado.

Sálvio NienKotter, que atua no mercado editorial há 15 anos, destaca que a proposta apresentada é ideológica e punitivista. “Essa contribuição não representa a necessidade de arrecadação do governo, mas sim a vontade de castigar as pessoas que reconhecem o conhecimento e a cultura”.

Resistência

O fim da imunidade tributária tem causado forte reação do mercado editorial. Como resistência, o setor livreiro, assim como o Sindicato Nacional dos Editores de Livros e a Câmara Brasileira do Livro (CBL), tem se posicionado e trabalhado contra a aprovação da proposta.

Alexandre Martins Fontes, editor e diretor da CBL, conta que o movimento de resistência organizado pelas entidades representativas foi muito intenso no ano passado, quando surgiu pela primeira vez. “O que está acontecendo agora é a retomada do movimento já iniciado anteriormente e a união em um trabalho para convencer a sociedade e os políticos de que a taxação dos livros é uma péssima notícia para todos nós”, conta Alexandre. Uma das iniciativas de resistência resultou na organização de um abaixo assinado, que reune mais de um milhão de assinaturas, em defesa da não tributação do livro.

Além disso, políticos também têm se manifestado contrários à proposta. O senador Flávio Arns (Podemos-PR) se declara contra a taxação e afirma que “o prejuízo será considerável, inclusive para a economia do país”. “Estou atento e atuarei em defesa de que a isenção tributária sobrevenha, mas é uma matéria que ainda não está no debate deliberativo do Senado”, destaca o senador.

“A Frente Parlamentar de Incentivo à Leitura, lançou nota de repúdio ao documento da Receita Federal e se essa intenção absurda prosperar vamos apresentar emenda para gente tentar barrar no Congresso”, declara a Deputada Federal, Gleisi Hoffmann, também se coloca contrária à taxação.

A proposta continua tramitando entre críticas e questionamentos, mas ainda sem relator e nem previsão de discussões no Congresso. No entanto, de acordo com o discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes, a reforma tributária terá avanços ainda este ano.

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