O engodo das privatizações dos serviços públicos: o retorno ao século XVIII

Extrema direita ataca a educação com projeto hegemônico

A economia capitalista, instalada a partir da Revolução Industrial em meados do século XVIII, teve como um de seus pilares ideológicos a crença de que o livre mercado e a formação do capital através do lucro seriam capazes de levar a sociedade humana à prosperidade e à abundância para todos. No entanto, ao longo de sua existência, a realidade de desigualdades, exclusão e miséria de uma larga parcela da sociedade foi convencendo, mesmo os economistas mais liberais, que o mercado sozinho não tinha essa capacidade. Para tanto, seria necessária a intervenção de um agente voltado ao interesse público e externo ao mercado para preencher as lacunas deixadas pelo que se convencionou chamar de ‘falhas de mercado’.

A percepção de que o mercado sozinho não seria capaz de atender a totalidade das pessoas, mesmo naquilo que lhes era essencial, e com o objetivo de aliviar as tensões que a desigualdade, a miséria e a exclusão geram no tecido social, com potencial de desestabilizar o próprio sistema capitalista, levou o Estado a intervir.

Coube a ele a assumir a prestação de um conjunto de serviços e o fornecimento de uma renda mínima a classe social explorada, chegando na sua forma mais bem acabada ao que se convencionou chamar de ‘Estado de Bem Estar Social’, implantado nos países europeus ao longo do século XX.

Estado Liberal

Portanto a intervenção do Estado na economia através do fornecimento de alguns serviços que se tornaram públicos e de acesso universal e mesmo o fornecimento de uma renda mínima aos seus cidadãos se deu muito mais pela necessidade de preservar o próprio capitalismo do que pela visão de justiça social das elites
econômicas. É bom destacar que a adoção dessas medidas compensatórias foi a principal estratégia das elites dirigentes europeias para o enfrentamento dos ideais socialistas e dos movimentos revolucionários do início do século XX que pretendiam a derrubada do modo capitalista de produção.

O capitalismo de Estado Brasileiro

A Constituição Brasileira estabeleceu, em seu Capítulo VII, que a Ordem Econômica no Brasil será fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, observando entre outros, os princípios da Propriedade Privada e da Livre Concorrência. Trata-se, portanto, de uma Constituição de orientação capitalista, propriedade privada dos meios de produção e formação de um mercado em que os agentes econômicos estabelecem o equilíbrio entre oferta e demanda de bens e serviços através da livre-concorrência.

Seguindo a linha de proteção da economia das falhas de mercado, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma relação de serviços essenciais que incluem: saúde, educação, previdência social, transporte público, saneamento básico, comunicação e energia. Essas áreas deveriam sofrer a intervenção do Estado por meio de prestação direta, de concessões e permissões ou pelo estabelecimento de normas e fiscalização para o seu fornecimento.

O capital avança sobre a proteção do Estado

A escolha de determinados serviços como de natureza pública, fornecido diretamente pelo Estado ou pela iniciativa privada sob controle do Estado, se dá pelas peculiaridades que esses serviços têm de essencialidade para a população e da dificuldade de criação de um mercado concorrencial, por constituírem monopólios naturais ou pelas barreiras de entrada de novos fornecedores dada a exigência de elevado capital ou de acesso a tecnologias de ponta.

No entanto, todas as características que tem um determinado serviço para ser escolhido como um serviço público, também são as características que prometem ao capital os mais elevados lucros. Ou seja, demanda cativa, monopólios e barreiras de entrada a novos fornecedores. Isso explica, de alguma forma, o avanço do capital sobre os serviços públicos num caminho de retorno ao século XVIII, em direção a um liberalismo sem peia com a supressão de qualquer resquício de um Estado do Bem Estar Social.

A partir de meados do século XX, a mobilização da sociedade europeia em torno de mudanças do modelo de produção capitalista foi perdendo força exatamente pelo efeito alcançado pelas políticas públicas de distribuição de renda. Foi quando a classe trabalhadora, percebendo uma melhoria nas suas condições materiais de existência, se desconectaram das lutas por mudanças econômicas radicais capitaneadas pelos movimentos políticos de esquerda.

A queda da União Soviética, último bastião de confronto ao capitalismo mundial, foi a senha para que todas as conquistas distributivas operadas pelos Estados Nacionais fossem questionadas, utilizando-se da velha, desgastada e comprovada falácia de que tudo tem que ser conquistado através dos mercados, refundando-se
assim o ideário econômico do século XVIII num movimento ideológico que convencionou-se chamar de neoliberalismo.

Neoliberalismo ataca a proteção social

Sem a ameaça dos Estados Nacionais que operavam suas economias fora do Capitalismo mundial, como a União Soviética, restava remover a última possibilidade de reação à retomada de um liberalismo predador do trabalho e do próprio capitalismo: os Sindicatos. Para isso, apossou-se das estratégias de comunicação e propaganda operada pelos nazistas, antes e durante a Segunda Guerra Mundial. Modelo de comunicação que levou a maioria do povo alemão a acreditar e apoiar um governo que pregava o imperialismo e o extermínio de povos como um modo justo de chegar ao seu bem estar.

De posse de um modelo de comunicação e propaganda manipuladora e contando com recursos quase ilimitados, os profetas do neoliberalismo passaram a atuar de maneira eficiente sobre a consciência da classe trabalhadora com o uso de todo o ferramental midiático a sua disposição. O objetivo agora era convencer a classe trabalhadora, rebatizada de “colaboradora”, que toda forma de luta coletiva é uma contravenção à ordem social e que qualquer reivindicação distributiva da riqueza produzida pelo trabalho é uma subversão à ordem econômica. O atingimento desse objetivo, que sempre foi buscada pelas classes dominantes, nos parece hoje bem mais perto de ser conquistada, como bem demonstra o avanço do pensamento da extrema-direita em todo o mundo.

Extrema-direita hegemônica

Nesse momento nos parece que a direita aprendeu e colocou em prática e com muita eficiência o conceito de hegemonia elaborado pelo filósofo italiano Antonio Gramsci. Este conceito contém a ideia que o controle das massas de trabalhadores pelas classes dominantes é feita com muito maior eficiência pelo domínio cultural do
que pelo uso da força bruta e que essa hegemonia cultural é conquistada pelo domínio do sistema educacional, instituições religiosas e dos meios de comunicação.

Podemos voltar agora para o objeto principal de nossa análise que é a terceirização dos serviços públicos. Se, num primeiro momento, argumentamos que o ataque do capital sobre os serviços públicos tinha um propósito econômico, já que os serviços públicos pela sua natureza garante aos seus fornecedores condições monopolistas, livrando o capitalista daquilo que eles mais temem, a concorrência, podemos perceber que as atuais terceirizações da educação pública possuem objetivos bem maiores do que produzir negócios lucrativos para os “amigos”.

Dos três instrumentos utilizados para construir a hegemonia cultural, citados por Antonio Gramsci, sistema educacional, instituições religiosas e meios de comunicação, o que está menos alinhado com os interesses das elites econômicas é, sem dúvida, o sistema de educação pública, ao qual a maioria dos trabalhadores colocam seus filhos para serem educados. Para reverter esse quadro, é necessário retirar os servidores públicos de seu papel de educadores e transferir essa função para trabalhadores privados que estejam sujeitos ao mandonismo ideológico do patronato.

Para chegar a esse objetivo, lança-se mão dos instrumentos já conquistados de comunicação para argumentar, sem nenhuma evidência fática, que a terceirização da educação representaria maior eficiência e menores custos, sem que para isto haja nenhuma comprovação de que com igualdade de recursos uma escola privada seja melhor que uma escola pública e que os custos da primeira sejam menores que da segunda.

O custo da escola

Quanto aos custos é necessário que haja um espancamento da aritmética para que se comprove que uma escola operando em regime privado tem menores custos que uma escola operada dentro do regime público.

Vamos a aritmética elementar. Uma escola pública demanda a cobertura de custos de três naturezas: custo do trabalho, custos de insumos e custo de instalações, enquanto uma escola privada deverá cobrir igualmente os mesmos três custos da escola pública e mais os custos de remuneração do capital investido (juros), custos
de impostos e custos de cobertura dos lucros empresariais. Como demonstrar que a somatória de três números positivos e maiores que zero podem ser maior que a somatória dos mesmos três números adicionados a outros três também positivos e maiores que zero?

A resposta poderia ser: os três primeiros fatores não são iguais na escola pública e na escola privada. Esse argumento não se sustenta porque considerando um ensino com a mesma qualidade as instalações e insumos deverão ser equivalentes e a mão de obra terá igual qualificação e remuneração.

Essa equação só tem uma hipótese de ser verdadeira se considerarmos que a remuneração do trabalho na escola privada será muito inferior do que a da escola pública. Essa certamente é a real promessa da privatização do ensino público, redução dos salários e precarização do trabalho acompanhada de uma boa dose de opressão ideológica, tendo como corolário a total degradação do ensino público e a dominação total dos instrumentos de construção de hegemonia cultural e consequente maior facilitação da dominação e exploração das massas trabalhadoras.

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1 comentário em “O engodo das privatizações dos serviços públicos: o retorno ao século XVIII”

  1. Alexandre Lutfi

    Falou bonito, mostrou conhecimento histórico e terminou bostiferando no ventilador. Uma pena. Defender qq sindicato é de uma falta de caráter sui generis

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