Os 80 anos do Levante do Gueto de Varsóvia

Entidades judaicas de diversos países lembram a importância do Levante ocorrido na Polônia durante a ocupação nazista

Todos são irmãos.
Negros, brancos, marrons, amarelos.
Somente as cores são diferentes,
porém sua natureza é a mesma!
Isaac Leon Peretz.

Esta declaração internacional no 80º aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia, que está assinada por entidades judaico-progressistas e democráticas, é uma grande manifestação em homenagem ao legado que foi deixado pelos combatentes, mártires, vítimas e sobreviventes contra o nazismo, o fascismo e o neonazismo, assim como contra as novas ameaças criminosas da guerra e contra o imperialismo. Pela Paz, pela Humanidade, pela liberdade dos povos, pelo progresso, pelo respeito aos Direitos Humanos Universais. Pelo compromisso com o legado político e os desejos mais profundos dos heroicos e heroicas combatentes do Gueto.

A História

Com a invasão da Polônia em setembro de 1939, se inicia a Segunda Guerra Mundial.

É outubro de 1940. Os nazistas decretam a criação do Gueto de Varsóvia, onde é confinada a massa de judeus falantes de iídiche, toda uma cultura. O iídiche, idioma que falavam aqueles judeus confinados, constituía sua pátria sem fronteiras, simbólicos tijolos das paredes de seu próprio edifício cultural. Foi o idioma do judeu trabalhador, do proletário, do confinado, e elemento aglutinante de uma cultura espalhada geograficamente, mas que se constituía num só povo. A cultura judaica em iídiche foi fundamental no contexto do Gueto. Sua defesa implicou na guarda da própria história e de uma cosmovisão, visto que este Idioma tinha algo de próprio e singular.

É junho de 1941. Após a invasão alemã à União Soviética e seu avanço até as portas de Moscou, a URSS declara a Grande Guerra Patriótica contra o inimigo nazista e seus aliados.

É janeiro de 1942, e na Conferência de Wannsee se sistematiza a “solução final ao problema judeu”: o extermínio em massa de judeus, missão encomendada às SS, apoiadas pela Gestapo e a Polícia. Passados poucos meses deste evento, na Batalha de Stalingrado, o Exército Vermelho da URSS consegue uma vitória decisiva sobre o Exército Nazista (Wehrmacht).

Neste ano também se constrói no Gueto o Bloco Antifascista – com Józef Lewartowski e Andrzei Schmidt na liderança – que pretendia incorporar-se à luta internacionalista de libertação dos povos oprimidos, na tática das frentes populares. Este Bloco foi dissolvido poucos meses depois, com a prisão de todos seus dirigentes.

No verão de 1942, apesar da resistência de alguns grupos, mas com a passividade de quem fora dominado física e psicologicamente, aproximadamente 300.000 pessoas são deportadas de Varsóvia a Treblinka, um dos cinco centros de extermínio em massa de judeus: entre gases, tiros e perseguições, ficaram apenas uns 60.000 judeus no Gueto.

Durante aqueles anos, no meio de tanta desolação surgiram no Gueto luzes brilhantes que nos iluminam até hoje: o lar de crianças órfãs do Dr. Janus Korczak, o arquivo clandestino de Emmanuel Ringlelblum – fundamental, juntamente com os depoimentos e as publicações periódicas, para a reconstrução histórica daquele horror –, entre outros.

A frente político-militar

O ponto máximo da resistência foi a criação, no final de 1942, da Organização Judaica de Combate (ZOB – Żydowska Organizacja Bojowa, ייִדישע קאַמף אָרגאַניזאַציע em iídiche): a Frente Político Militar é integrada pela maioria dos Partidos Políticos do Gueto – Sionistas, Sionistas Socialistas, Socialistas, Comunistas e outros.

Em novembro de 1942 a Organização Judaica de Combate declara como traidor seu próprio Conselho Comunitário (Kehilá) – Judenrat, de orientação colaboracionista – e a Polícia Judaica: inicia-se a reorganização do movimento clandestino no Gueto.

É 19 de abril de 1943. O exército nazista, a mando do general Jürgen Stroop, entra no Gueto de Varsóvia com a missão de liquidá-lo e deportar os 60.000 judeus remanescentes para os campos de extermínio. Justamente nesse dia, nesse ano, se iniciava a celebração do Pessach, importante festa judaica na qual se comemora a libertação dos escravos judeus no Egito. Evocando a mensagem de liberdade que esta festividade representa, iniciou-se o Levante. A ZOB, com Mordechai Anilewicz à frente – mais tarde sucedido por Marek Edelman –, e constituída na sua grande maioria por jovens que não tinham mais que 22 anos, organizou e começou a resistência, quase sem armas, apenas com a vontade de lutar. Assim como estes homens, também estiveram na liderança mulheres como: Niuta Teiltelbaum, Rosa Rosenfeld, Zosia Iamaika, Ludka Arbesman, Renia Niemetza, Margosia Zalstein, Esther Berenholz, Sonia Papierbuj, Halinka Rojman, Zoia Brzesinka, Schajne Faingold, Emilia Landau.

Sabiam que não lutavam pelas suas vidas, mas pela dignidade do gênero humano em si, pelo respeito próprio, pela igualdade, a liberdade e a solidariedade. Para aqueles que combateram não era apenas uma luta entre bons e maus, mas sim a forma de como se apresentar aos seus carrascos: dóceis ou rebeldes.

Na atualidade, ante o ressurgimento do nazifascismo reconstruído em escala mundial, e diante do antissemitismo em crescente expansão e agressividade, esclarecer, difundir e abraçar as lições deixadas pelo histórico levante é um dever ineludível e impostergável. Devemos educar para prevenir um possível novo genocídio.

O Levante

Os jovens moradores do Gueto iniciaram, nos esconderijos subterrâneos, desde o Bunker da rua Mila 18, uma revolta armada que durou quatro semanas, em condições desiguais, contra o exército alemão. Sua comovente força simbólica é a nossa bandeira.

Os inúmeros – simples porém colossais – atos dos combatentes do Gueto, contribuíram para um futuro – que hoje é o presente – com espaço para a liberdade, a emancipação dos povos, os Direitos Humanos, a Justiça e a dignidade, constituíram a Resistência: uma bela e elevada criação do Humanismo militante.

Uma lição para qualquer tempo

Que lição de vida nos foi deixada pelos e pelas combatentes! Eles e elas, frente à adversidade, priorizaram a unidade. Entenderam que a única batalha que com certeza se perde é aquela que não se luta. Este é um dos mais importantes significados de seu legado. O Levante do Gueto de Varsóvia frente à barbárie nazista já pertence ao patrimônio da Humanidade.

Hoje, mais que nunca, devemos lembrar aqueles que combateram no Gueto de Varsóvia, resgatar seus valores coletivos: a vida, a dignidade humana, a rebeldia de oprimidos contra opressores, a liberdade, a responsabilidade, a solidariedade, o respeito pela diferença, a justiça e igualdade. Devemos também transmiti-los às novas gerações, pois hoje, mais do que em qualquer outro momento, cada ação solidária para com a vida contribui para forjar uma sociedade justa e humana. Lutamos por um mundo onde sejamos “socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”, assim como sinalizou Rosa Luxemburgo.

O atual crescimento da direita

O Levante deve servir, também, como exemplo na luta contra o negacionismo e as fake news, essas mesmas ferramentas já empregadas pelo nazismo quando disseram à população judaica do Gueto que sua deportação (à morte) tinha como objetivo melhorar suas condições de vida. Hoje, as possibilidades de manipulação são cada vez maiores, mas as estratégias são as mesmas: a cultura do medo, o discurso de ódio, a construção de um inimigo comum, o esvaziamento da linguagem, junto do desenvolvimento tecnológico, os algoritmos e a inteligência artificial. Este é o caldo de cultura do atual ressurgimento da extrema direita em todo mundo.

A terrível experiência que viveu o Brasil recentemente, que se mimetizou com o nazifascismo, deve servir de advertência a todos os povos. A profundidade e a solidez com que se enraizou na mente de quase a metade de sua população é uma lição candente que os democratas de todas as tendências e latitudes devemos compreender.

Também é necessário olhar para o Estado de Israel, onde parte da população hon ra a memória do Levante quando se mobiliza e luta para evitar a transformação dos oprimidos em opressores; para não dar um aval às justificativas cínicas ou hipócritas para qualquer barbárie ou perversão. Como nunca antes na história da evocação do Gueto, que já conta oito décadas, lamentavelmente não há espaço para dúvidas – e isto nos gera uma grande preocupação – sobre onde estão localizadas, naquele contexto, muitas das forças dirigentes que comandam a atual política de extrema direita que guia o Estado de Israel. Essa política está gerando, para o próprio Estado, um destino incerto e perigoso, que pode implicar desde a destruição de seu sistema democrático até sua conversão em uma ditadura.

Nesta perspectiva é necessário lembrar que no presente ano também se cumprem 50 anos do golpe de estado no Uruguai; 50 anos do golpe de Estado contra Allende, no Chile; 40 anos da restauração da democracia na Argentina e 190 anos da ocupação britânica das Ilhas Malvinas. A consciência do passado ilumina os caminhos do futuro.

Nossas organizações nasceram no calor da luta antifascista e se uniram para combater o fascismo. Hoje, como ontem, devemos nos posicionar na primeira linha de combate, junto com todas as outras forças democráticas, na unidade contra os movimentos de extrema direita que avançam no mundo e ameaçam toda a humanidade.

MIR ZAINEN DO! !ָדא נען זײ מיר (ESTAMOS AQUI)

A Democracia não se negocia, porque Nunca mais é Nunca mais.

Pela Memória, pela Verdade, pela Justiça.

Não esquecemos, não perdoamos. Não nos reconciliamos com os genocidas de ontem, nem com os de hoje, nem com os de amanhã.

Façamos nossa a letra do Hino dos Partisans. Vamos juntos em busca de nossa e vossa Liberdade

Assinam:

Judeus Progressistas de Curitiba – Brasil
Museu do Holocausto – Brasil
Argentinos Amigos da Paz Ahora – Argentina
Asociación Cultural Israelita de Córdoba – Argentina
Asociación Cultural Israelita de Tucumán – Argentina
Asociación Cultural Israelita Dr. Jaime Zhitlovsky – Uruguai
Asociación Cultural y Deportiva Israelita Argentina I. L. Peretz de Santa Fé – Argentina
Agrupación Judía Diana Arón – Chile
Asociación Sholem Buenos Aires – Argentina
Associação David Frischman de Cultura e Recreação – Brasil
Associação Sholem Aleichem – Brasil
Casa do Povo – Brasil
Centro Cultural Israelita de Mendoza – Argentina
Centro Cultural Israelita I. L. Peretz de Lanús – Argentina
Centro Cultural Israelita Rosario – Argentina
Centro Cultural y Deportivo Israelita de Ramos Mejía – Argentina
Centro de Documentación y Biblioteca Pinie Katz – Argentina
Centro Literario Max Nordau – Argentina
Coro Popular Morde Guebirtig – Argentina
Federación de Entidades Culturales Judías de la Argentina – Argentina
IFT Idisher Folkjs Teater – Teatro Ppular Judio – Argentina
Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil – Brasil
Union des Juifs pour la Résistance et L’Entraide – França
United Jewish People’s Order – Canadá

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