Sobre a parte que me faltava

Nós jornalistas nunca devemos esquecer que, mesmo relatando as vozes a serem ouvidas, devemos fazê-lo invariavelmente relatando também todo o peso da história que elas carregam

Nunca me senti tão jornalista quanto agora, estudando História. Me sinto no dever de ser absolutamente sincera, com quem lê mas também comigo mesma, ao admitir que a paixão pelo Jornalismo foi uma paixão adquirida, e não inata. Foi um casamento arranjado no qual eu tive sorte de encontrar carinho com o passar dos anos.

Nos tempos do estudo do Jornalismo eu frequentemente me sentia presa. Queria inspirar e expressar criatividade, criar coisas diferentes, escrever ensaios mais pessoais e humanizados. Nunca havia me agradado a ideia do estilo pessoal ser uma regalia reservada aos comunicadores mais relevantes da profissão — primeiro seja como todos, se depois quiser ser como você é.

Tive trabalhos elogiados que não passaram nem da primeira fase de seleção para premiações, tive discussões com superiores do curso por discordar da moral de decisões tomadas, tive momentos em que queria desistir. Mas também tive, ainda bem, tempo suficiente para perceber que justamente nessa indignação estava a fagulha essencial do Jornalismo. As provocações, os testes, e os deveres, todos fizeram parte, premeditada ou acidentalmente, dos alicerces desse sentimento revoltante que deu origem ao lado mais apaixonante da profissão.

De qualquer forma, ainda sentia que me faltava algum pedaço. Artigos opinativos e reportagens publicadas, assessorias e gestões de crise administradas, documentários devidamente gravados, memorização de regras da ABNT, estudos sobre a oratória no discurso radiofônico, centenas de entrevistados com os quais tive a oportunidade de conversar e trocar muitos aprendizados valiosos… e ainda assim, um pedaço faltava.

Eu encontrei exatamente esse pedaço na História. Cometi a maluquice que todos sugerem que ninguém cometa: comecei mais uma faculdade. Me tornei
novamente uma caloura, andando perdida pelos corredores de uma universidade totalmente diferente da que eu já conhecia, tentando equilibrar todas as minhas
incontáveis coisas em uma só mesa.

Quando me matriculei no curso de História eu já estava esperando que muita coisa fosse diferente. A vida toda eu fui emotiva, exageradamente intensa nos sentimentos, e à infância saía das aulas de História da escola com os olhos inchados de tanto chorar. Busquei cursar essa disciplina pelo amor inflamado que sempre nutri por ela — meu amor proibido, o divergente ao jornalístico casamento arranjado. Eu tinha consciência de que esse estudo me ajudaria a ser uma
profissional melhor, mas nunca imaginei encontrar na História, além de todo o amor que eu já tinha certeza que estava ali, exatamente a parte que me faltava no Jornalismo.

O baque maior me acometeu no dia 14 de agosto, perto das 19h da noite, quando aconteceu na Universidade Tuiuti uma aula inaugural intitulada “Vozes da Resistência”. Nós, estudantes de História e de diversos outros cursos, tivemos a oportunidade — o privilégio — de ouvir os testemunhos de oito sobreviventes das perseguições políticas que aconteceram durante a ditadura militar brasileira.

Naquele momento, ouvindo todas as suas histórias de tortura, tenacidade, sofrimento e, principalmente, luta e coragem, eu entendi o que significava esse espaço que me faltava.

Percebi num tranco que, enquanto jornalista, eu não deveria apenas dar voz ao povo, ou às minorias, ou aos invisíveis, mas também dar voz às suas histórias, e à História de tudo. Levei anos para enxergar, mas me ocorreu que o Jornalismo sempre foi uma linda forma de preservação da História das coisas. Como fazer o Jornalismo sem a História? Como fazer a História sem o Jornalismo?

A compreensão da concomitância entre essas duas escolas me trouxe, pela primeira vez, a queimação do amor no peito ao pensar no Jornalismo enquanto arte de relatar, conservar, e respeitar o ser humano e suas jornadas. Sempre havia admirado a beleza de tirar o fôlego do estudo da História, mas enxergá-la tão claramente nas entranhas do Jornalismo me despertou um orgulho imenso de ser humana como todas essas outras pessoas que, uma a uma, fizeram nossa trajetória enquanto humanidade.

Como é importante, e arrisco dizer que até necessário, que todos nós responsáveis pela comunicação no Brasil nunca nos deixemos esquecer que, mesmo relatando as vozes a serem ouvidas, devemos fazê-lo invariavelmente relatando também todo o peso da história que elas carregam. Seja este relato explícito ou discreto, ele deve estar, pelo menos, em nossas mentes.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Sobre a parte que me faltava <div class='awpa-single-post-star-variation' attributes='[{"ratings":{"id_5223":5},"sum":5,"count":1,"avg":5,"people_count":{"count_5":1}}]' show_star_rating='1' rating_color_back='#EEEEEE' rating_color_front='#ffb900' rating_type='5' show_avg='', show_star_type='' show_votes='' star_size='x-small'></div> ”

  1. LUCIANA NASSER DORNELLES

    Que texto, que reflexão!
    Ver como profissões nunca podem ser taxadas como caixas fechadas de conhecimentos, mas sim um amplo compilado de áreas associadas e que enriquecem as análises que o profissional pode realizar!
    A História é uma das áreas que deveriam estar presentes em todas as profissões, em todas as áreas, em todas as faculdades de ensino, é a base da sabedoria de análise das atitudes que devem ser tomadas futuramente, com base no que passamos no nosso passado. Tudo, absolutamente, tudo pode ter como base a análise do nosso passado para não deixarmos acontecer os mesmo erros que outrora foram cometidos.
    No jornalismo, em especial, esse conhecimento amplo da parte histórica é tão necessária pelo amplo impacto que essa área tem na transmissão de informações e na sua ação na formação de opiniões da população!
    Muito lindo ver sua trajetória por essa área tão necessária e tão repreendida pelas forças sociais que querem nos tirar nosso senso crítico e nossa capacidade de impedir que erros do passado ocorram novamente no nosso futuro breve!
    Parabéns!

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