Ana Frango Elétrico: “A poesia é um atalho contra a saturação da realidade”

Ana Frango Elétrico, 22 anos. O divertido estranhamento causado por seu nome artístico é também o principal indício da sonoridade sinestésica desta carioca – cantora, compositora e escritora. Ana foi escolhida como artista revelação pelo prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) de 2019, e indicada ao Women’s Music Event na categoria “Escute as Minas”.

Ela lançou dois discos: “Mormaço Queima”, de 2018. E “Little Electric Chicken Heart”, do ano passado. Com ranço do termo Nova MPB”, Ana propõe jogos. De palavras, de recortes imagéticos em suas letras, ora surreais ora ingênuas, e sonoros. Rogério Duprat, o arranjador oficial do tropicalismo, ficaria feliz em ouvir a jazzística “Saudade”, que abre seu segundo álbum.

Foto: Divulgação

A liberdade criativa de Yoko Ono, David Bowie, Björk e Ava Rocha também são referências. Antes que lhe cancelem por falta de talento específico, é bom avisar que Ana Frango Elétrico, ao que parece, brinca de cantar e compor, sem esquecer de seu lugar no mundo pós-moderno. “Sou homem-bicho-mulher”, diz a garota, que tem admiração pela música brasileira, mas busca, ao seu jeito, romper com algum cordão umbilical ainda retroativo.

Ana Franco Elétrico é uma das atrações do Libélula de Carnaval 2020, que começa amanhã (21) e segue até terça-feira (25) na chácara do Tio Miro, em São José dos Pinhais, região metropolitana de Curitiba. Chico César, Bananeira Brass Band, Trupe Chá de Boldo e Charme Chulo também estão na programação. Ela se apresenta no domingo (23), às 22h. No dia 29 de março, ela faz show em Curitiba. Na entrevista abaixo, Ana falou sobre sua relação com as redes sociais, sobre a necropolítica vigente, sobre a falência da Nova MPB e avisou que lança, neste ano, seu primeiro livro. “Porque a poesia possibilita utopias”.

– Você conhece Curitiba e região, já esteve por aqui?
Nunca. Vai ser a primeira vez. Conheço por meio de alguns amigos do teatro e da música, como o [ator, poeta e compositor] Luiz Felipe Leprevost. Tem muita coisa rolando aí, né? Uma coisa legal é que o algoritmo do Spotify me diz que muita gente de Curitiba ouve a minha música.

– Como será o show nesse ambiente familiar, de comunidade alternativa, proposta pelo Festival Libélula?
Fiquei muito feliz com o convite porque acho que aos poucos a gente perdeu a cultura desse tipo de festival. De estar na natureza, em comunhão com pessoas de várias idades. Estou muito animada mesmo. Meu show vai ser o do segundo álbum, com releituras de músicas do primeiro. Há músicas com uma pegada nostálgica e melancólica, mas também me baseio no cinema e no teatro para criar as apresentações. Vou estrear um show novo no festival, com novo roteiro e algumas surpresas.

– Quem mais te acompanha no palco?
Antônio Neves no trombone, Eduardo Santana no trompete, Guilherme Lírio na guitarra, Vovô Bebê no baixo e Marcelo Callado na bateria. [Guilherme Lírio é um dos caras do Exército de Bebês, banda formada por alguns dos principais músicos da nova cena carioca. Marcelo Callado faz parte da banda Do Amor e foi baterista da Banda Cê, que acompanhou Caetano Veloso em sua última trilogia].

– Falando sobre o seu nome artístico. É uma espécie de homenagem torta a seu avô, mas ao mesmo tempo uma crítica a questões patriarcais e de gênero. Aquela coisa de não usar o sobrenome do homem…
Homenagem não… Meu sobrenome é Fainguelernt, vem do meu avô e tem origem russa. O grande lance pra mim, para além da luta contra esse reflexo do patriarcado, é a questão da libertação de ego. Da possibilidade artística. Criei a Ana Frango Elétrico e estou descobrindo quem é essa persona. Hoje, sou homem-bicho-mulher.

– Na identidade visual, e nas músicas, você trabalha também questões importantes como gênero e identidade. Acha que esse tipo de abordagem é cada vez mais necessária e esclarecedora?
Sim, é totalmente natural pra mim. Eu não tenho letras politicamente binárias porque acho que estou num processo de descoberta interna. Tenho 22 anos, né? E minha pesquisa é ligada à poesia. Sinto uma insatisfação com a falta de expansão da poesia nos vários campos artísticos. Insatisfação com a forma que a poesia se apresenta. No primeiro disco, fiz uma escolha de produção específica: não exaltar a canção ao vivo. Nesse ano, vou gravar um compacto com releituras do primeiro álbum, e talvez mude alguma coisa nessa abordagem, nos temas.

– Você é uma millenial, faz parte de uma geração que já nasceu com internet, celular. Você é muito ligada em redes sociais, prefere o contato real ou dá pra conciliar tudo isso?
Sou muito ligada. No Instagram principalmente, porque adoro imagens. Arquivo coisas, faço álbuns, divulgo meu trabalho. Mas parece que cada show e festival tem uma estética, e um público diferente, e às vezes não consigo dar conta de tudo. Tenho outra conta para amigos íntimos… Mas eu cresci em outro contexto. Foi num condomínio na beira da Favela do Morro dos Prazeres [zona sul do Rio de Janeiro]. Jogava bola na rua, tenho uma casca grossa no meu pé, fazia cabana no mato, meu pai foi criador de abelhas. Acho que isso me construiu mais do que a internet, que entrou depois na minha vida.

– Sua música é colorida, tem cheiro, é sinestésica. Algumas letras são quase surreais e é visível seu apreço pela palavra. Você é uma leitora também? De quê?
Sou leitora de poesia. Comecei a gostar de palavra com a poesia. Tenho dificuldade com leituras longas, me distraio. Na poesia, me vejo num lugar muito interessante, de apreço. E que pode ser fácil também. É bizarro como o contato com a poesia é dificultado escola, por vários motivos. Uma das coisas que gosto de fazer é trazer a poesia para a vida. Às vezes pode ser surreal, mas não só isso. São colagens da realidade. Coisa de recorte da poesia. Todo mundo sente frio, sente tesão, sai para passear com o cachorro. É um atalho para evitar a saturação da realidade. Um pingo de utopia inesperado. Porque a poesia ficou tão distante… e se vai além da realidade, já é engraçado ou surreal. Estou lendo [Vladimir] Maiakovski [poeta soviético, 1883-1930] para a minha mãe, que está em processo de recuperação. E vou lançar um livro em julho, com uma coletânea de textos desde 2015: “Escoliose: Paralelismo Miúdo” (independente).

– Sei que você não gosta do termo nova MPB, porque na verdade é quase um paradoxo, mas a expressão pós-MPB parece fazer algum sentido, né?
Faz mais. Nova MPB é um termo falido porque nunca aconteceu. A gente entendeu o que ele é, mas poderia ser descrito e vivido de uma maneira mais humilde, aí eu me encaixaria. Sou pós-tudo isso. Gosto de ilhas estéticas, e cada artista entende o que elas são: misturas, underlines. Já defini minha música como bossa-pop-rock-decadente com pinceladas punk. Agora estou mais para rock-balada-jazz. O conceito musical do que é moderno já começou a dar a volta. Pra ser moderno, não precisa estar no hype. E essa Nova MPB já entendemos muito claramente: sabemos o som do violão, da percussão. Sou mais da pós-Tropicália, da pós-Nova MPB. Estou tirando as coisas de mim, é um processo de ruptura.

– Você é carioca, vive numa cidade administrada por um pastor evangélico que tentou censurar livros, o estado é governado por um sujeito que comemora morte de outras pessoas. Este nosso momento, tão indigno e grotesco, acaba por influenciar seu trabalho de alguma forma?
Com certeza. Me afirmo contra a essa política de governo que sucateia tudo o que é importante. Isso me move muito em relação a pensamentos, conversas, encontros. Aí penso no que posso fazer. Minha irmã trabalha com ribeirinhos no Pará, e absorvo essa luta. As minhas canções são mais poéticas, e isso é importante neste momento. Vivemos essa realidade da necropolítica. E a poesia possibilita utopias. Precisamos ouvir mais. Ouvir as mulheres, as negras, as trans. Eu não falo tanto porque tenho noção dos meus privilégios e sou classe média e branca. E me incomoda muito branco classe média falando pra caralho sobre temas tão importantes. Pesquiso muito antes de falar sobre isso, mas é preciso agir contra esses babacas fascistas do meu estado e do Brasil.

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