Aline Bei é escritora e autora do livro O Peso do Pássaro Morto, um romance sobre as perdas na vida de uma mulher dos 8 aos 52 anos. A vida da personagem é narrada de uma forma desconstruída, o que acrescenta o interesse da leitora a uma história cuja profundidade e sensibilidade por si só já fariam com que continuássemos a leitura num único fôlego, ainda que os temas tratados sejam dolorosos.
Aline foi a vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018 na categoria Melhor Romance de Autor com Menos de 40 anos e seu livro tem sido indicado em vários eventos organizados por mulheres para a leitura de obras escritas por autoras mulheres, o Leia Mulheres. O Peso do Pássaro Morto foi uma das minhas leituras de janeiro de 2020, o ano que dediquei para ler mulheres.
Tão tocada pela poesia do texto e pela inovadora escrita de Aline Bei, decidi convidá-la para uma entrevista. Solícita e muito generosa, Aline imediatamente aceitou meu convite e dedicou algum tempo para responder minhas singelas perguntas. Me contou um pouco mais sua visão sobre o porquê tratar dessas perdas em uma perspectiva feminina, do silenciamento de mulheres vítimas de violência, do poder da arte para transformar realidades, de uma visão real da maternidade e muito mais.
Contém spoilers, mas vale a pena seguir em frente mesmo que você ainda não tenha lido; essas respostas vão te convencer que essa deve ser a sua próxima leitura.
A história é sobre a vida de uma mulher marcada por perdas e me pareceu que todas essas perdas estão de alguma forma conectadas ao ser mulher, ou então impactam a personagem de uma forma peculiar porque ela é mulher. Você considera importante tratar desses temas especificamente na perspectiva da mulher?
‘Quando escolhi escrever sobre perdas, logo imaginei o verbo dentro do corpo de uma mulher. Como vivemos em uma sociedade patriarcal, esse exercício de perder é muito mais nosso, temos um verdadeiro arsenal de possibilidades que nos são negadas diariamente, que nos são tiradas, ou impostas. Imaginei então que seria potente observar isso de perto’.
A história da personagem principal é marcada por uma violência sexual e ela vive muito duramente com as consequências disso. O que te motivou a tratar desse tema?
Como eu disse, quando comecei a escrever o Pássaro, pensei em uma história sobre perdas e sabia que em algum momento aconteceria o estupro, uma das formas mais antigas do homem demarcar poder sobre o corpo de uma mulher.
A personagem principal não relata pra ninguém o que aconteceu, um padrão de comportamento que muitas mulheres adotam após uma violência, seja por culpa, vergonha, medo ou outros motivos diversos. Você acha que a história da personagem seria diferente se ela tivesse contado o que houve ou se ela pudesse contar com uma rede de apoio?
Sem dúvida. O silenciamento é um dos temas centrais do livro, e eu queria que a personagem se calasse tanto ao ponto de acordar os nossos próprios silêncios. Tudo teria sido bem diferente, tenho certeza, mas o trauma paralisou a personagem, a impediu de agir. Em nenhum momento eu quis julgar suas atitudes, e sim acolher.
Me chamou a atenção a relação da personagem com a própria maternidade. Nós estamos habituadas a pensar esse papel de uma forma muito romantizada e, nessa visão, esse não é um local que deve significar uma perda na vida de uma mulher, ao contrário do que é para a personagem principal. Você teve a intenção de repensar a experiência da maternidade e retratá-la de forma mais real?
Muito. Olho para as relações de mães e filhos ao meu redor ( inclusive a minha) e elas são absolutamente humanas, todos erram, se cansam, são violentos um com o outro de alguma forma, ainda que exista amor. Se relacionar é sempre um desafio, muitas vezes encontramos mais afinidades com pessoas fora do ciclo familiar, e não há problema nisso. No caso da minha personagem, tem um agravante que é o estupro, então a relação entre ela e o filho fica ainda mais dolorosa.
Você conseguiu retratar a realidade da violência contra mulher de forma muito humana e profunda. Acredito que muitas mulheres se identificaram com a história e olharão para si de uma forma diferente após a leitura do livro. Você acredita na importância da arte e principalmente da literatura para sensibilizar as pessoas sobre essas questões e, quem sabe, incentivar uma mudança de comportamento?
Acredito muito nisso. A arte cria um diálogo íntimo com quem a desfruta com profundidade, e essa troca tem um poder enorme de transformação.
O seu livro vem sendo indicado em vários círculos de leituras que privilegiam autoras mulheres, em várias cidades do Brasil, principalmente o Leia Mulheres. Como você vê esse movimento?
Com muito afeto. Tive a sorte de participar de algumas rodas, e foram experiências maravilhosas, de escuta e acolhimento, com desdobramentos que atravessam a literatura, ancoram na vida das leitoras e dos leitores e isso, pra mim, é fundamental.