Mais do Texas: Parque Nacional Big Bend

Se eu fosse místico, diria que tive um contato com o divino

Depois da imersão artística em Marfa, parti para o parque nacional mais importante do Texas, o Big Bend. No caminho, outra cidadezinha que valia uma visita, Alpine, com forte influência da cultura mexicana.

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Deixei o Paçoca na frente de uma igrejinha de Alpine e, antes de bater perna para fotografar, parei em um Wine Bar simpático, em que um trailer antigo fazia as vezes do depósito de vinhos e do caixa. A dona, uma senhora mais velha do que eu, tinha uma trança comprida, um sorriso largo e uma alma hippie. Uma boa parte da comunidade do campismo americano e canadense é uma comunidade alternativa típica. É um mundo sem igreja, mas entregue a energias cósmicas e entidades mágicas.

Wine Bar em Alpine. Foto: André Tezza

Os campistas dos Estados Unidos são bem diferentes dos brasileiros. Quem já frequentou algum grupo de WhatsApp de donos de motorhomes no Brasil ou frequentou feiras como a Expomotorhome sabe que ainda é um mercado um tanto elitizado – até porque os equipamentos nacionais geralmente são caríssimos. Como uma vez me disse um fabricante brasileiro, as famílias com poder aquisitivo estão trocando a casa de praia pelo motorhome.

Nos Estados Unidos e Canadá, há de tudo, inclusive quem chega para acampar de BMW. Mas são os mais pobres que moram permanentemente nos trailers. A estadia em um camping público, com água, energia e esgoto sai mais em conta do que alugar um imóvel tradicional. Uma visão realista do que acontece no campismo norte-americano pode ser vista em Nomadland, longa que ganhou Oscar de melhor filme em 2020. A maior parte das pessoas que mora em motorhome é mais velha, não é bem-nascida e definitivamente não é influencer de viagem.

A dona do Wine Bar me serviu uma taça de vinho branco e quando soube que estava indo para o Big Bend, colocou a mão no coração e, suspirando, disse que eu estaria lá com a lua cheia. Eu precisava fazer as trilhas à noite, porque seria assim que sentiria a energia mágica. Com educação, comentei que era uma boa ideia, mas pensei o contrário, porque o Big Bend é uma região de ursos pretos e desde o acidente em que um urso matou dois turistas em Banff justo quando eu estava lá, não desdenho mais o perigo da natureza selvagem. Minha família acha que vou voltar para o Brasil com uma cueca de crochê, mas algumas coisas não mudam. Ou quase.

Cultura mexicana no Texas. Foto: André Tezza

Cheguei no dia seguinte ao Big Bend. A aproximação é impressionante: um parque com um combo de deserto, cânion e montanhas. Quando as montanhas não estão obstruindo a linha do horizonte, a sensação de imensidão é brutal. Em alguns trechos da estrada estamos em um ponto ligeiramente mais alto e o alcance da vista vai até a fronteira do México. Aqui dá para ver e sentir por que o Texas é o segundo maior estado dos EUA, menor somente que o Alasca. A fronteira com o México é feita pelo Rio Grande. Daí vem também o nome do parque: Big Bend é a grande dobra do rio que faz a fronteira.

A experiência do Big Bend seria bem diferente dos parques anteriores. Não há cobertura de celular. Só iria conseguir acesso via wi-fi próximo de três postos dos rangers, os guarda-parques. Meu camping tinha água e estação de esgoto, mas sem eletricidade e cobertura de Internet. Em compensação, nos postos do rangers, além da Internet, lá também havia uma lavanderia e um pequeno supermercado.

Passarela em uma das trilhas do Big Bend. Foto: André Tezza

Há três grandes áreas para percorrer no Big Bend. Fiz cada uma delas em um dia diferente, como os rangers me sugeriram. O primeiro dia foi para explorar as trilhas próximas do camping. No roteiro, um pequeno cânion, um rio com um filete termal (uma das sugestões da hippie de Alpine) e algumas trilhas próximas de montanhas chapadas – como as chapadas brasileiras. Era bem bonito, mas comparado com o que veio depois, esta seria a parte menos interessante do Big Bend.

No segundo dia, parti para as montanhas, na área das montanhas Chisos, onde havia mais uma série de trilhas para fazer. Era lá que os ursos e os pumas costumavam ficar. Ali também estava a trilha mais popular do parque, a Lost Mine.

Comecei pelas trilhas curtas. A primeira era uma volta rápida, 15 minutos, em uma área calçada. Os pássaros eram uma atração à parte. Um deles, o Blue Jay, tinha uma coloração azul magnífica e estava por todos os lados. Outro pássaro, também espalhado em todo o parque, era o roadrunner. O roadrunner é um pássaro que corre pelo chão em velocidades superiores a 40 km/h. O roadrunner não é ninguém menos do que o Papa-léguas – aliás, o nome do desenho animado, em inglês, era “Wile E. Coiote and the Road Runner”. O pássaro que inspirou o desenho corre exatamente da mesma forma que o Papa-léguas, com as pernas se movendo para frente e para o alto, um pequeno Usain Bolt do deserto. Todo a ambientação do desenho veio desta região dos EUA. Se nem o coiote consegue pegar o Papa-léguas, não fui eu que consegui fotografá-lo.

Após o rio Grande, território mexicano. Foto: André Tezza

Durante a segunda trilha, algo extraordinário aconteceu. Não demorou muito para que eu ficasse sozinho em um trecho de mata mais fechada. Comecei a ouvir barulhos próximos e não sabia se eram pessoas ou não. Logo deduzi que só poderia ser um animal e o barulho do mato denunciava que era um bicho grande. Imediatamente apalpei o spray de urso que estava na bolsa externa da mochila. Se fosse preciso, estaria ao alcance do braço. Andei mais uns dez metros e o mistério se revelou.

Um cervo pequeno, filhote, a cara do Bambi, apareceu na minha esquerda, uns quinze metros adiante, se esgueirando no aclive. Tirei a mochila e fiz algumas fotos do bichinho. Normalmente, eles são extremamente ariscos. Vi muitos durante a viagem, sempre encontros relâmpagos, pois logo disparam e somem. Mas o pequeno Bambi não se intimidou. Fiquei completamente imóvel, com a máquina fotográfica em transe, nenhuma foto prestou. O bichinho veio na minha direção e parou na trilha, alguns poucos três ou quatro metros na minha frente. Ele não parou de me encarar e depois do nosso cumprimento, andou em minha direção e cruzou pelo meu lado.

Se eu fosse uma pessoa mística, diria que tive um contato com o divino. Mas como não sou uma pessoa mística, precisei de um bom tempo para entender por que depois do encontro chorei de um jeito que só lembro igual quando criança. O que aconteceu? Ou melhor: o que vem acontecendo? Desde que eu entrei no Texas, tenho me emocionado muito. A solidão foi um empurrão para a introspecção de alguém que já era viciado em introspeção. Mas houve mais.

Blue Jay, pássaro típico do Big Bend. Foto: André Tezza

O encontro com o bichinho foi um despertar. Tudo não durou mais do que um minuto, ainda que minha memória não concorde muito com isso. Naquele instante, todo o tempo que não o tempo do encontro desapareceu. Foi uma imersão profunda, sem ser perturbado por qualquer tipo de devaneio ou desejo. Era uma novidade extraordinária da minha consciência. Desmoronei. Creio que a soma de meditação, psicoterapia e desconexão com a Internet estão mudando a forma como lido com o mundo. Estou mais presente.

Depois do encontro com o bichinho, fiz a trilha da mina perdida. As vistas desta trilha são espetaculares. Também aproveitei a trilha para conversar com calma com as pessoas que encontrei pelo caminho, todas com mais de 65 anos. A infraestrutura dos parques nacionais americanos permite isso: como tudo é muito bem-feito e estruturado, não há limitações de idade para visitar a natureza.

Fazendo a trilha Lost Mine. Foto: André Tezza

O último dia do Big Bend foi para conhecer o cânion e a estrada que ficavam na extremidade sudoeste. As vistas eram, para variar, espetaculares. E o cânion, diferentemente do cânion do primeiro dia, muito mais impressionante. Fiz as caminhadas pela manhã e ao final da tarde cheguei em Terlingua, uma cidade fantasma. Seria um dos últimos destinos texanos, antes de entrar no Novo México.

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