Perdido na Patagônia

Se há um lugar para se ter certeza de que não sabemos o que estamos procurando este lugar é a Patagônia

Na régua da minha juventude, no tempo sem o muro de Berlim e em que as ideologias libertárias mais radicais já estavam totalmente desidratadas, a viagem, ou simplesmente escapar, passou a ser um sentido plausível de existência.

É um sentido que, para as réguas anteriores, para quem lutou contra uma ditadura ou para quem lutou em uma guerra (o tempo dos pais e dos avós, o tempo do século XX), seria considerado decadente, covarde e egoísta. Claro que a mudança de rota não foi somente a consequência de um capricho da cultura ou do fracasso da política como metafísica, mas também por uma circunstância econômica que permitiu que a viagem fosse uma realidade não só dos ricos ou dos países ricos.

Naquele finzinho do século XX, eu já fazia parte do tempo em que fugir não era mais visto com desprezo, uma vez que fugir estava se tornando algo massivo e universal. A indústria do turismo ganhava uma lógica colossal, própria daquela que é a maior indústria do mundo.

Mesmo que fugir não seja algo propriamente novo para a modernidade (já aparecia em Montaigne: “sei do que vou fugindo, não sei o que vou procurando”), é seguramente algo novo para o século que quase até o fim apostou que achava que sabia o que estava procurando – e, a bem da verdade, no limite radical dessa premissa, pelo menos nas apostas da política, encontrou mais tragédia do que dignidade. 

Minha primeira experiência para fora do país foi para a Patagônia. Eu e meus amigos companheiros de viagem (entre eles o Bob Marochi, do Plural) ainda respirávamos um último sopro da adolescência, com o entusiasmo de quem pela primeira vez havia tirado o cinto de segurança do olhar dos pais. Fugimos de casa de verdade.

Tentando dormir no chão do aeroporto de Rio Gallegos, à espera do ônibus que sairia dali a algumas horas e que nos apresentaria aos cenários argentinos e chilenos da Patagônia, eu começava a entender que não saber o que vou procurando seria uma das minhas verdades particulares. Talvez mais, talvez a faceta predominante do espírito de um tempo. A fila na entrada do ônibus era quase toda de jovens como nós, nos gloriosos vinte e poucos anos, mochilas grandes nas costas e uma vida inteira de incertezas pela frente.

Nós viajávamos basicamente para caminhar e acampar, afinal os parques do sul do continente são extasiantes. Há uma brutalidade mágica na Patagônia que parece escapar a Bruce Chatwin. Crítico de arte do Sunday Times, Chatwin escreveu “Na Patagônia”, clássico absoluto da literatura de viagem. A despeito do inegável valor literário, falta correspondência entre o destino e o livro. Chatwin escreve com distanciamento, com um olhar frio para as pessoas e as paisagens. É verdade que há aridez e frieza na Patagônia, mas Chatwin faz um retrato em preto e branco. Funciona como literatura, mas é irreal, sem a força mítica dos cenários. O livro pertence àquela tradição inglesa que prega a economia máxima dos adjetivos: o texto deve ser dos verbos e dos substantivos.

De minha parte, viajar é não ter medos dos adjetivos e a Patagônia só pode existir em cores fortes.  O azul no céu lembra o azul de vidro que faz nas manhãs frias de Curitiba. Raios laranjas se dispersam entre montanhas e florestas, porque o sol patagônico não sobe nunca, anda em círculos no horizonte. Tudo tem um ar incomum e aquela cor suave que na maior parte do mundo permanece poucos instantes no início da manhã ou no final de tarde, no verão da Patagônia é a lei do dia todo. 

Há também o branco azulado das geleiras, que pode se estender por quilômetros. Em Perito Moreno, a mais conhecida das geleiras patagônicas, há um script que deixaria Hitchcock feliz. No início da manhã, em frente a uma parede de 5km de extensão e 60m de altura, é possível ver e ouvir pequenas pedras de gelo que vão se desgrenhando aos poucos, com ruídos metálicos de torção. A estrutura está viva. Por volta do meio-dia, barrancos de gelo do tamanho de um prédio de 20 andares vão se descamando e despencando sobre o lago em frente, com o som furioso de uma explosão. O momento fatal é acompanhado por urros de orgasmos dos turistas. É uma violência extraordinária, rara, que estranhamente nos pacifica.  

A paisagem patagônica, quando não é desértica nem branca, pode mostrar uma floresta geométrica. É verde escura e há poucas espécies de árvores (normalmente, não mais do que três), com um espaço respeitoso, quase árido, de pelo menos um metro entre cada tronco. A floresta parece desenhada por um engenheiro alemão. Quando observadas de longe, o dossel forma uma harmonia pontilhista, muito diferente da vegetação densa e embaçada dos trópicos a que estamos acostumados. Nos trópicos, a floresta quente se abraça nos próprios troncos e raízes, e a vida humana, como um espelho, também se entrelaça e se reproduz com o suor e o calor. No extremo sul, não. As árvores e a vida comungam a solidão, com um vento que não descansa nunca, assobiando forte na dobra verde das encostas e no vidro das casas com paredes grossas. A existência humana é necessariamente abrigada, acolhida pelo fogo, pelo vinho e pela melancolia.

No asfalto de pista simples, ainda no frio do início da manhã do deserto argentino, vejo um motorhome brasileiro ultrapassar o nosso ônibus. Na traseira, um adesivo branco com letras vermelhas anunciava: “não me siga, estou perdido”. Se há um lugar para se ter certeza de que não sabemos o que estamos procurando este lugar é a Patagônia. 

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