Viajando com Montaigne

As anotações de viagem feitas por Montaigne séculos atrás continuam sendo preciosas para qualquer viajante que se arrisque pelo mundo

Quando viajo, sempre tenho um companheiro ao meu lado. É um dos meus autores favoritos, um sujeito único do finalzinho do Renascimento: Michel de Montaigne. Sua obra-prima, “Ensaios”, é uma invenção original para avaliar as questões triviais da vida a partir de uma experiência e de uma reflexão pessoal. É uma filosofia não dogmática, não sistemática, cheia de incertezas e profundamente atravessada pelo dia a dia do próprio Montaigne. Por isso mesmo, ainda que faça parte da tradição filosófica, os “Ensaios” são textos de classificação difícil, porque às vezes se assemelham à literatura, outras vezes a anotações despreocupadas de um diário.
 
Quando lemos Montaigne, a sensação é a de que estamos conversando com alguém muito próximo de nós, um amigo de confiança e indispensável. Ele não tem medo de revelar suas fraquezas mais íntimas e de apontar que a dúvida é uma aposta melhor para caminhar no mundo do que a moralidade edificante ou a arrogância de uma sabedoria inquestionável. A humildade e a generosidade de Montaigne nos acalmam e ele parece falar não de um passado distante, mas do presente. Os “Ensaios” são atemporais porque se dedicam àquilo que permanece.

Menos conhecidos do que os “Ensaios” são os seus “Diários de Viagem”, espantosamente ainda sem tradução para o português. Entre 1580 e 1581, Montaigne viajou pela França, Alemanha, Áustria, Suíça e Itália, uma jornada de cerca de dezoito meses. Os textos não foram pensados para a publicação e parte deles não foi escrita por Montaigne, mas ditada a um serviçal da viagem. É uma obra secundária, fragmentada e eventualmente inconsistente. No entanto, esta viagem foi suficientemente importante para que Montaigne ampliasse e corrigisse edições posteriores dos “Ensaios”. A primeira publicação dos “Diários de Viagem” só aconteceu na segunda metade do século XVIII. Ainda nesta época, durante a Revolução Francesa, os textos originais desapareceram. Uma cópia incompleta escrita à mão foi redescoberta em 1980 e serviu para correções das edições anteriores.  

Em princípio, Montaigne não viajou a turismo. Como sofria com o cálculo renal, buscava tratamento e cura com as águas das estâncias termais. Ao longo dos relatos, há a descrição pormenorizada de estâncias de vários países. Além disso, tendo vivido o auge da Contrarreforma, ele também estava preocupado com a possível censura da igreja católica aos “Ensaios”. Durante a viagem, enquanto visitava Roma, conheceu o papa Gregório XIII e passou boa parte da estadia na cidade lidando com autoridades religiosas. 
 
Os “Diários de Viagem” são preciosos porque, a despeito dos compromissos de saúde ou das dificuldades editoriais dos “Ensaios”, os relatos revelam algo muito próximo da experiência contemporânea de viajar. Montaigne gostava de avaliar as hospedarias, a qualidade da comida, a arquitetura das cidades e a liturgia das igrejas. Seu arrebatamento, por exemplo, com a Piazza del Campo, a praça central de Siena, soará familiar a qualquer turista do nosso tempo que tenha visitado o local. Bom, de minha parte, quando estive em Siena, após andar pelos corredores labirínticos medievais e chegar com espanto na Piazza del Campo, imediatamente soube que nunca mais me esqueceria daquilo – e lembrei-me de Montaigne.

De certo modo, Montaigne foi o primeiro blogueiro de viagem e as mensagens que ele nos traz de cinco séculos atrás nada mais são do que o fascínio pela novidade que é tão característico da modernidade. Viajando, Montaigne não julgava os diferentes com seus próprios padrões culturais ou morais — foi também, portanto, um precursor da antropologia. Para ele, a conversa com estranhos poderia ser uma das melhores escolas possíveis, mais benéfica para a vida do que os livros.

Na escola de Montaigne, tudo são tentativas e perspectivas. Isto não significa que devamos abandonar qualquer possibilidade de verdade em um relativismo estéril, mas que deveríamos ser céticos e desconfiados com as nossas descobertas. Ler Montaigne no tempo em que estamos rodeados pelos textos das redes sociais digitais, tão cheios de certezas e sem uma chance verdadeira para a escuta, é um grande alívio.

Quando viajamos, somos todos, acho eu, endividados com Montaigne. A taxa de juros é alta. Diante da novidade, todos nós viramos ensaístas, gostamos de observar e tirar conclusões sobre aquilo que é diferente. Basta olhar nos blogs, nos canais de YouTube ou na bela tradição da literatura de viagem para confirmar que a predisposição para aflorar o antropólogo que existe dentro de nós é um grande sucesso contemporâneo.  
 
 

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