Mereço ser deserdado?

Começo esse texto trazendo o comentário que um leitor deixou sobre minha última coluna: “Interessante como reza a cartilha ideológica. Não ousa escrever que lucra nem que acumula excedente de capital das 90 CTPS que assina. É ‘mais valia’, utilizando o vocabulário como meio de redenção perante seus pares esquerdos os quais, por sua vez, não são os donos dos meios de produção. Enjoa.”

Sim, causei enjoo. Talvez por ter forçado a barra ao me colocar mais ao lado dos trabalhadores do que ao lado dos patrões.

A ideia central da minha escrita era uma análise crítica da “cadeia alimentar” do capitalismo, onde eu exploro o trabalho de alguém mas não passo de um mero atravessador, um peixe pequeno, já que acima de mim vêm outros alguéns: os donos dos imóveis, a quem chamei de senhores feudais, ou mesmo os donos de bancos, que não citei no texto anterior. Argumentei que os senhores feudais se beneficiam da “mais valia” do meu trabalho, já que, não raro, levam bolada maior do que a minha no final do mês. Causei enjoo porque, como dono dos meios de produção (os fornos, fritadeiras, mesas e cadeiras), estou do lado do explorador e não do explorado.

Por esse ponto de vista o comentário do leitor está correto. Logo, precisamos convir que todo dono de restaurante, boteco, bar, bodega, café, independente do tamanho de seus negócios, são exploradores, já que são detentores dos meios de produção, mesmo que esse “meio de produção” seja um fogão enferrujado de 4 bocas que não vale mais de trezentos reais. Acontece que o dono de uma bodega equipada com apenas um fogão de 4 bocas é visto como um trabalhador, um fodido que não tem onde cair duro, um reles mortal. Jamais é visto como um explorador da mão de obra alheia. Aqui brota uma dúvida: o conceito de mais valia só serve para exploração em larga escala ou cabe a qualquer um que detenha qualquer meio de produção?

Talvez eu tenha exagerado, jamais poderia me colocar ao lado dos meus funcionários mesmo que meu dia a dia seja ali, ao lado deles, recebendo clientes, servindo mesas, cozinhando, mediando conflitos, traçando estratégias. Diferente do que imaginam alguns, eu não sou um nômade digital que recebe pro labore a distância num bangalô nas Ilhas Maldivas. Mas isso pouco importa. O ponto, na verdade, é outro: eu sou um herdeiro. Me posicionar do lado esquerdo no espectro político é “roubar” o lugar de fala de alguém.

Por essa lógica, Freidrich Engels, herdeiro de um pai milionário da era industrial, jamais poderia ter escrito o Manifesto Comunista. Calma, gente, eu não tô me achando Engels. E o que falar dos irmãos Moreira Salles, herdeiros do Itaú? Será que seus filmes deveriam enaltecer os méritos e o virtuosismo de mocinhos herdeiros de bancos ou é melhor ele denunciar a fome no mundo, a ditadura e outras tragédias?

Na visão de meus críticos o meu “lugar de fala” só me permite reforçar a retórica neoliberal: estado mínimo, fim das leis trabalhistas, devoção à meritocracia, camisetinha da seleção no sete de setembro e adesivo no carro escrito “política não é profissão”. Não posso falar o que penso ocupando o lugar que ocupo.

É como se só mulheres pudessem defender o voto em mulheres; como se só pessoas pretas pudessem ser a favor das cotas nas universidades; como se só moradores de favelas pudessem pedir mais Estado dentro das favelas.

Uma saída, para deixar a hipocrisia de lado, seria doar tudo que tenho. Mas os meus negócios (as minhas terras) não são improdutivos (não são latifúndios). Aqui empregos são gerados, impostos são pagos, pessoas são capacitadas e, não raro, rola umas ações sociais. Doar tudo serviria apenas para regozijo momentâneo dos meus haters.

Apesar do fogo cruzado, sinto informar que sigo o mesmo: querendo abrir cada vez mais negócios, ser cada vez mais empresário e, ao mesmo tempo, criticar essa sociedade desigual que só sabe reverenciar a riqueza alheia. Ah, claro, talvez seja por isso que dão tanta importância ao que eu escrevo. Maldita riqueza.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima