Tchutchuca do mercado imobiliário

É ilusão eu achar que sou uma pessoa livre e sem patrões. Não passo de um inquilino facilmente substituível, um servo dos senhores feudais, tal qual os motoristas de aplicativo ou YouTubers

É difícil explicar o conceito de empreendedorismo. Eu mesmo, depois de ter aberto seis empresas, ainda sinto dificuldade de escrever “empreendedor” na hora de preencher a ficha de check-in do hotel. Dizem por aí que motorista de Uber é microempreendedor. Será que o Uber, ao receber a ficha em branco na recepção do hotel, escreve “empreendedor” no campo da profissão?

A palavra por si só é um obstáculo linguístico. Peça pra seu amigo estrangeiro dizer “empreendedorismo” pra ver o que sai. Não só em português ela é um trava língua. Entrepreneur, sua versão em inglês, é tão impronunciável quanto. Empreendedorismo deve ser uma das últimas palavras que qualquer criança vai aprender a falar em seu processo de alfabetização.

A grosso modo empreender significa “ter uma ideia, de preferência com um diferencial de mercado, transformá-la em realidade e fazer dela um negócio”. Posso dizer, então, que um escritor, ao lançar um livro, se torna um empreendedor? Um aventureiro que cruza o mundo a bordo de um veleiro e depois ganha a vida dando palestras é um empreendedor? Um cozinheiro que faz eventos gastronômicos, onde se enquadra? O que eles escrevem no campo “profissão” no check-in do hotel?

Tecnicamente poderíamos dizer que pra ser empreendedor é preciso ter um CNPJ, é preciso existir como pessoa jurídica. Acontece que para abrir um CNPJ não precisa ter uma ideia, nem ter diferencial de mercado e sequer você precisa transformá-la em realidade e assinar a carteira de trabalho; ou seja, você pode até existir como empreendedor na teoria, mas não existe na prática. Outra forma de avaliar pode ser através da cadeia alimentar. Quem engole quem? Sabemos que esse papo de chamar motorista de aplicativo de “empreendedor de si mesmo” é uma falácia. Não passam de serviçais de alguém que sequer sabe de sua existência.

O mesmo serve pra tiktokers e instagramers. Tudo bem que tem influencer ganhando milhões produzindo conteúdo, mas podemos chamá-los de empreendedores só porque emitem nota fiscal pra fazer publi? Ou são meros funcionários do dono da porra toda que teve a ideia de um negócio que, se um dia parar de funcionar, deixa um monte de gente desempregada?

Amigo, lembre-se: não é o fato de não ter uma carteira assinada que faz de você um empreendedor. Não é o fato de você não bater o ponto ou não ter um chefe oito horas por dia no teu cangote que te faz um autônomo; não se iluda, no fim do dia você está servindo a alguém. Falo por mim.

Tenho o pacote completo pra me chamar de empreendedor: tive uma ideia, abri um negocio, tenho CNPJ, assino 90 carteiras de trabalho, me beneficio da mais valia, mas a real é que eu estou no meio da cadeia alimentar, alguém me engole no fim do mês. Alguém que com frequência recebe mais dividendos do meu negócio do que eu mesmo: os donos dos imóveis.

É ilusão eu achar que sou uma pessoa livre e sem patrões. Não passo de um inquilino facilmente substituível, um servo dos senhores feudais, tal qual os motoristas de aplicativo ou YouTubers.

Na próxima viagem, ao chegar na recepção do hotel, vou preencher na ficha do check-in: inquilino. Ou, melhor: tchutchuca do mercado imobiliário.

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