Pablo Marçal e a política como extensão da delinquência

A mera possibilidade de Pablo Marçal ocupar um lugar de destaque na política brasileira já é a normalização da barbárie que temíamos e que agora é realidade

Minha última coluna atraiu, nas redes sociais do Plural, um pequeno punhado de comentaristas despejando os impropérios de sempre. Sobrou até para o jornal, chamado de “folhetim terrorista” por um gajo com fixação pela morte e de “jornaleco de M” por um ator do Condor, a rede de supermercados.

Tudo porque mencionei Pablo Marçal, o golpista que virou coach e agora quer ser prefeito de São Paulo com as bênçãos do PCC. Nenhum dos comentários apontou algo de positivo nele ou elogiou alguma ideia ou projeto seu. Surpresa zero: as ideias e os projetos de Pablo, o amigo do Escobar, têm a mesma consistência dos seus escrúpulos.

Ademais, isso é o que o menos importa a quem o apoia, igualmente desprovidos de ideias e, bastante provável, também de escrúpulos.

Mas algo ali me causou uma pequena estranheza. Supondo que parte, se não a totalidade, dos que comentaram a postagem são curitibanos e eleitores nessa capital que nos cabe viver, por que não se indignaram, igualmente, com a menção a Eduardo Pimentel? Por que nenhum esforço para defender o candidato de Greca e de Ratinho Jr., uma tentativa de dar um verniz de polidez à incivilidade bolsonarista?

Desse silêncio, pode-se tirar duas conclusões, principalmente. A primeira, mais óbvia, é que meus supostos críticos não se deram ao trabalho de ler a coluna, se limitando a comentar a passagem que o editor destacou na postagem do Instagram.

A segunda, que não exclui a primeira, antes a complementa: embora provavelmente eleitores de Eduardo Pimentel, esse povo tem mesmo é fissura em homem truculento – não por acaso adoram lamber uma bota. Votam em Pimentel porque é melhor um bolsonarista meio sem sal que um candidato que defenda, sei lá, bobagens como democracia ou diminuição das desigualdades.

Com a ascensão meteórica de Bolsonaro, depois do voto pelo impeachment de Dilma a um torturador, estuprador e assassino, Brilhante Ustra, assistimos a uma crescente deterioração do ambiente político brasileiro. O crescimento, igualmente meteórico, de Marçal na disputa pela prefeitura de São Paulo, é a continuidade, o “resultado lógico”, daquele gesto emblemático.

Nesse sentido, a mera possibilidade de Pablo Marçal ocupar um lugar de destaque na política brasileira, independente do resultado das eleições, já é a normalização da barbárie que temíamos e que, com Marçal, agora é realidade.

Imaginar novos futuros

Bolsonaro e Marçal, o criador e sua criatura, não são fenômenos isolados. Com características mais ou menos comuns, apesar dos contextos específicos, a extrema-direita vem ganhando força e abocanhando quinhões de poder político mesmo em países, como a Argentina e a França, que acreditávamos, até recentemente, imunes a esse mal.

A normalização da barbárie é, de certa forma, resultado da normalização de uma democracia que se fixou em seus limites formais. Um dos antídotos à ameaça autoritária, o fortalecimento de uma cultura democrática plural, capaz de ultrapassar os limites da formalidade quase burocrática das democracias liberais, soa cada vez mais distante.

A opção pela conciliação, marca dos governos petistas, teve, como um de seus efeitos colaterais a crescente identificação do campo progressista com a chamada política tradicional e seus vícios, como a baixa representatividade, a incapacidade de responder às demandas e carências cotidianas e a corrupção, por exemplo.

Tornada gestora das instituições, a esquerda renunciou, paulatinamente, sua habilidade de mobilização e de produtora de indignações. Imobilizados e reféns de um presente incessantemente atualizado, perdemos a capacidade de imaginar futuros outros, condição fundamental para não normalizamos, também, nossa distopia cotidiana

Restou vago um espaço ocupado pela extrema-direita e sua pantomima política, a de fazer crer que ela questiona, afrontosamente, o inimigo chamado “sistema”. Que Bolsonaro e Marçal façam parte do sistema, pouco importa. A imagem que projetam em suas redes sociais e na postura, que oscila, oportunisticamente, entre a agressividade e a vitimização, é a da liderança rebelde e perseguida.

Assim, capitalizam e transformam em estratégia política e de poder, os anseios, as fragilidades e, principalmente, os ressentimentos do “cidadão de bem”, oferecendo-lhe, não exatamente uma causa a abraçar, mas inimigos, muitos, a temer e odiar.

Em seu clássico e seminal “As origens do totalitarismo”, Hannah Arendt defendia que um dos sintomas das ideologias totalitárias, como o nazismo, é uma espécie de investimento libidinal, produzindo no que ela denominou como “homem atomizado”, uma sensação de identificação e poder.

Uma “paixão pela desigualdade” (não confundir com diferença), nas palavras de Jacques Rancière, “que permite a ricos e pobres encontrarem uma multidão de inferiores sobre os quais devem, a todo custo, manter a superioridade”. Algo como o empresário paulistano que defendeu rever a concessão de bolsas para alunos pobres, porque elas causam um “impacto social negativo” em estudantes carentes que frequentam as escolas privadas.

Supremacia e prosperidade

Nesse sentido, é ingênuo supor que os eleitores de Bolsonaro, Marçal ou Pimentel carecem de formação ou informação. Eles não votam no bolsonarismo apesar da truculência e do autoritarismo, mas justamente por isso. A cultura do ódio, portanto, não é produto de alguma forma de carência, mas de um desejo que encontrou guarida nas instituições políticas e, hoje, pauta o que restou do debate público.

Em outras palavras, não é como se eleitores de uns e outros acreditem, por exemplo, nas mentiras que ajudam a propagar em ritmo industrial. Eles sabem que não é verdade, mas reconhecem nas chamadas fake news, a realização daquilo que anseiam e desejam, além do resultado imediato de seu engajamento militante.

Nessa mobilização se cruzam e complementam a satisfação imediata prometida pela ideologia da prosperidade, e o individualismo exacerbado e sacrificial do neoliberalismo.

Comecei com Pablo Marçal, encerro com ele. O TI de organização criminosa não disputa com Bolsonaro a liderança da extrema-direita apenas pelas razões exauridas pelos analistas nas últimas semanas. Ele acrescenta, às características habituais do bolsonarismo, um afeto novo, somando à pretensa superioridade moral, a convicção de que seus eleitores merecem igualmente a superioridade material e que ela depende, unicamente, deles.

Nessa narrativa, não há espaço para laços mais amplos de cooperação e solidariedade, tampouco para a política, tomada naquele sentido que lhe conferiu Arendt, a de organizar e regular o convívio entre diferentes. Como parte da aliança entre neoliberalismo e extrema-direita, a polis se transforma em um lugar de uma disputa desigual, espécie de “darwinismo individualista” que esvazia de sentido a esfera pública e a política.

Tanto Bolsonaro como Marçal dependem, para seu êxito como lideranças dentro do espectro da extrema-direita, do esgarçamento do espaço público, território onde se encontram diferenças e pluralidades.

A estratégia de Bolsonaro foi se lambuzar de farofa e leite condensado com pão, para sugerir uma identificação, quase uma unidade, entre o “homem comum” e seu “mito”. parecer um homem comum e sugerir uma unidade simbólica.

Marçal vai no sentido oposto, ao reafirmar a superioridade de quem “venceu”, pouco importam os meios, quem são os derrotados e a que preço – no sentido amplo da palavra. É essa mistura de superioridade moral e material, messianismo e delinquência política que fazem de Marçal um perigo ainda maior que Bolsonaro.

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