Michelle e os filhos moram num prédio abandonado, e seu maior medo é o despejo

Juíza, posso tirar uma foto sua?

Foi assim que conheci Valentina, uma menina de oito anos que mora com sua mãe Michelle e seu irmão Miguel em um cômodo apertado de uma ocupação num prédio no centro de uma grande capital, que um dia abrigou um órgão público. Ali, entre corredores desgastados e famílias que buscam um abrigo temporário, Michelle enfrenta a difícil realidade de criar dois filhos em um espaço exíguo, sem as condições mínimas para uma vida digna. O edifício, então abandonado, foi ocupado durante a pandemia por 89 famílias, e hoje oferece um teto, mas não a segurança, a estabilidade ou os direitos que uma moradia adequada deveria proporcionar.

Eu estava lá como parte de um projeto institucional do Conselho Nacional de Justiça, com o objetivo de formular políticas para levar cidadania e inclusão a pessoas em situação de rua ou moradias irregulares. A falta de moradia adequada priva as pessoas de direitos básicos e muitas vezes impede o acesso a serviços públicos essenciais. Para essas famílias, a ausência de um simples CEP pode significar a perda de direitos.

Valentina, uma menina cheia de vida, colou em mim assim que me viu. Pulava ao meu redor disparando milhares de perguntas, como é próprio das crianças. Se encantou pelo meu sapato vermelho, perguntou quem tinha dado meu anel em formato de passarinho e contava muitas histórias, que eu tinha dificuldade de entender em razão de uma importante dificuldade de articulação verbal. Logo seu irmão Miguel juntou-se a nós. Um pouco mais novo, pés descalços, também com dificuldades na fala e evidenciando ser portador de alguma neuroatipicidade.  Perguntei se eles iam para a escola, e a longa história que me contaram desaguava num sonoro ‘não’.

A mãe deles, Michelle, de 25 anos, chegou até nós e contou sua história. Nunca concluiu a alfabetização, pois, sendo a filha mais velha, teve que cuidar dos irmãos enquanto a mãe trabalhava como diarista. Quando engravidou aos dezessete anos, mudou-se para o outro lado da cidade, mas sem pré-natal, sem endereço fixo, e sem acesso a serviços de saúde. Valentina nasceu pelas mãos da avó, e só foi ao médico quando já era grandinha.

Michelle viveu um ciclo de violência doméstica, do qual fugiu quando estava grávida de Miguel. Não fez pré-natal novamente, pois não podia pagar o transporte para o posto de saúde. Uma enchente levou o pouco que tinha, e, grávida, com Valentina nos braços, ela foi parar no centro da cidade, dormindo nas ruas até encontrar abrigo temporário em uma casa de caridade.

Quando soube da ocupação de um prédio abandonado, viu ali uma chance de ter um lugar para sair das ruas. Hoje, vive com seus filhos em um cômodo de menos de dez metros quadrados. Contudo, sem comprovante de endereço, as crianças não podem frequentar a escola. Miguel precisa de atendimento especializado, mas sem documentação ou endereço, não há como acessá-lo. Michelle também não tem documentos, perdidos na enchente, e sobrevive com trabalhos ocasionais e a ajuda dos vizinhos.

O maior medo de Michelle é o despejo. O cômodo apertado e mal iluminado é sua única segurança, mesmo que frágil. Não consegue sequer fazer melhorias no espaço, com medo de perder tudo. Vive com a sensação de que, a qualquer momento, sua família pode ser expulsa.

Na despedida da minha visita, Valentina me perguntou se eu iria almoçar. A pergunta me deixou constrangida, especialmente ao perceber que, provavelmente, ela não teria uma refeição naquele dia. Suas palavras ficaram comigo, ecoando enquanto seguia minha jornada. No dia seguinte, ouvi no noticiário sobre o desabamento de um pavilhão em uma igreja, onde centenas de pessoas, como Valentina e Michelle, estavam em busca de doações de alimentos. Duas vidas se perderam ali.

A história de Michelle reflete a realidade de milhões de brasileiros. Sem moradia adequada, essas famílias vivem à margem, sem acesso aos direitos básicos. A falta de uma morada digna não é apenas uma questão de abrigo, mas de cidadania. Quando não há segurança na posse, quando não se tem um CEP, perde-se também o direito à educação, à saúde, à dignidade. Michelle não vive apenas sem um lar; ela vive sem a possibilidade de construir um futuro melhor para si e para seus filhos. Crianças como Valentina e Miguel são condenadas a perpetuar o ciclo de pobreza de seus pais, não por falta de capacidade, mas por falta de oportunidades. A moradia é a base sobre a qual se constrói a dignidade humana e o acesso a direitos fundamentais.

O impacto é profundo: sem um teto seguro, sem condições básicas de higiene e segurança, as pessoas vivem à mercê de despejos, marginalizadas, excluídas do direito de serem cidadãs plenas. O simples fato de não ter um CEP, um endereço, as torna invisíveis para o Estado e para a sociedade. A história de Michelle e seus filhos nos mostra que a ausência de uma moradia adequada não é apenas uma questão de abrigo, mas de cidadania, de existência.

Investir em moradia é transformar vidas. Um teto seguro pode significar não apenas um abrigo, mas a chance de romper o ciclo da pobreza, de garantir que crianças como Valentina e Miguel possam sonhar com um futuro melhor e ter as ferramentas para alcançá-lo.

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