Mulheres e o cumprimento de pena com o afeto

Como você imagina a vida na prisão? Essa é uma reflexão incomum, considerando a proximidade da questão: pessoas que foram presas estão por toda parte convivendo conosco

Maria, 64 anos, com problemas de saúde, três filhos, condenada à prisão por um roubo de 2001.

Como imaginam a vida na prisão? Essa é uma reflexão muito pouco praticada, considerando tamanha proximidade da questão: pessoas que foram presas estão por todos os lugares convivendo conosco.

Nos conformamos em seguir o atalho dos estereótipos, o que é legítimo.

Uma pessoa mais progressista poderia responder: a prisão é um lugar superlotado; com pessoas marginalizadas; em um ambiente insalubre. Outros, menos críticos, poderiam responder: a prisão é um lugar de sofrimento para compensar a prática de condutas ruins praticadas por pessoas más.

E você, como responderia?

Para elaborar esta resposta, construiu a imagem que eu gostaria em seu consciente. Guarde esta imagem antes de continuar a leitura.

Esse é o lugar em que pessoas passam anos cumprindo pena após uma condenação criminal.

Existe, entretanto, uma forma diametralmente oposta para que uma pessoa cumpra sua pena. Essa forma se chama: remição.

Aqui vamos abrir um parêntese para dar uma de professor Pasquale: remição com “ç” é pagamento. Ou seja, é forma de cumprimento de pena. Não é perdão de pena (nesse caso, seria “remissão”).

Pode-se, assim, cumprir uma pena com trabalho, estudo ou leitura de livros.

Cumpre-se a pena de forma positiva quando se substitui o encarceramento por uma conduta considerada mais valiosa, como o trabalho. O trabalho, sendo uma atividade plurívoca, não foi especificado no art. 126 da LEP. Nesses casos, adotando-se os prismas constitucionais e a necessária filtragem, o trabalho a ser considerado deve ser aquele que possui valor social (art. 1º, IV, da CF), independentemente de haver remuneração ou carteira assinada (não há qualquer restrição legal de apenas considerar o trabalho disposto na Consolidação das Leis do Trabalho que, aliás, apenas trata de parcela do trabalho existente, aquela em que há relação de emprego entre desiguais). O importante é que se trate de uma atividade com valor social e reconhecida. Para ser econômico: trata-se, no mínimo, de uma importante forma de redução de danos.

Entretanto, podemos dar um passo adiante, e é aqui que iniciamos nossa reflexão, propondo o seguinte questionamento: como as mulheres no cárcere ou aquelas em prisão domiciliar ou com uso de tornozeleira eletrônica (regime semiaberto), sobrecarregadas com afazeres domésticos, reprodução social e de cuidado, podem exercer este direito e cumprir a pena com remição pelo trabalho?

Maria, aquela mulher que cumpre a pena relatada no início, considerando sua idade avançada e problemas de saúde, foi-lhe reconhecido o direito à prisão domiciliar em abril de 2023.

Em estudo realizado por profissionais do serviço social, verificou-se que ela trabalha exclusivamente com a rotina de seus próprios cuidados, já que reside apenas com a filha mais nova, de 21 anos, que é profissional autônoma e passa muito tempo ausente.

Esse trabalho na economia do cuidado, agora, deve ser considerado como atividade para fins de remição. Foi o primeiro pedido de remição realizado na Comarca de Curitiba, ainda sem julgamento.

Além de Maria, várias outras mulheres, como Cida, uma mulher com filhas, em prisão domiciliar, mãe solo e responsável por duas crianças, uma delas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), passam boa parte do tempo correndo entre unidades básicas de saúde para cuidar das filhas.

Janete, condenada por tráfico, cumpre prisão domiciliar para amamentar sua filha, além de cuidar de outra filha mais velha, de 12 anos. É a única responsável pelos serviços domésticos. Foi a primeira pessoa a aferir a remição pelo trabalho na economia doméstica em Telêmaco Borba.

Muito embora, a um olhar superficial de quem desconhece a realidade daqueles que vivem o cárcere, pudesse parecer que essas mulheres estavam sendo beneficiadas por cumprirem a pena em casa, a realidade é outra. Trata-se, na prática, de uma penalização. Elas ficavam impossibilitadas de trabalhar (seja por obedecer ao perímetro de permanência, seja pelas interseccionalidades que as atravessam e que as impedem de conseguir um emprego formal) e, consequentemente, de obter renda. Assim, o Estado era, e é, conivente com a fome e a miséria dessas mulheres e de seus filhos.

Quais são as consequências de estar em casa e não no cárcere? Se o cumprimento da prisão domiciliar visava atender ao mandamento constitucional do direito dos filhos à convivência familiar (sim, é um direito dos filhos, conforme o art. 227 da CF) ou à saúde da mulher (art. 196 da CF), a consequência disso é a privação do trabalho, da alimentação e da moradia (também direitos fundamentais). Além disso, essa situação impede a mulher de obter a remição da pena: um direito decorrente do trabalho, prolongando o tempo de cumprimento da pena e impondo às mulheres uma situação mais desfavorável em relação aos homens.

A prisão domiciliar não pode servir como uma forma de sanção, já que se essa mulher estivesse encarcerada, poderia remir sua pena pelo trabalho.

Essa tese é “Bicho do Paraná”. Surgiu na Defensoria Pública estadual. Foi concebida na comarca de Guarapuava pela assistente social Nilva Maria Rufatto Sell. Virou tese institucional apresentada pela coautora da presente coluna, Mariela Reis Bueno. Foi vencedora do Prêmio Innovare 2023, com votos de ministros do STF e STJ, entre outros, e adotada em dezenas de juízos de execução penal pelo Brasil.

Ao realizar o plano-piloto de remição da pena pelo exercício de trabalho doméstico e de cuidado na Comarca de Guarapuava, percebeu-se que essas mulheres, antes invisibilizadas pelo sistema penal e jogadas na miséria (por não terem a oportunidade de remição), passaram, através das atividades de “fiscalização” do Depen, através do Complexo Social, a serem encaminhadas para a rede socioassistencial do município. Elas foram inseridas em programas de transferência de renda e, o mais significativo, sem regressões de regime e sem reincidência, o que antes ocorria rotineiramente.

Dessa forma, essas mulheres, marcadas pelo cárcere e enfrentando diversas barreiras para acessar o trabalho formal e com renda, têm seu trabalho diário na economia do cuidado (trabalho na reprodução social, doméstico e de cuidado) reconhecido como de valor social e, portanto, apto a ser considerado para a remição da pena.

Maria, Cida e Janete – histórias reais e fictícios são apenas os nomes –  são mulheres que devem cumprir condenações. Entretanto, com uma lupa sobre suas vidas, podemos compreender que a elas não deve ser imposta a lógica antropocêntrica de sanção e de trabalho, pois seriam duplamente sancionadas. A sensibilização sobre questões de gênero deve permear todas as esferas do sistema de justiça para que haja alguma mitigação de desigualdade.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

As árvores somos nozes

A arborização urbana é uma prática essencial para promover a saúde, o bem-estar e a sustentabilidade nas cidades. Ela não só embeleza o ambiente urbano, mas também oferece benefícios tangíveis para a qualidade de vida e o desenvolvimento sustentável

Leia mais »

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

Rolar para cima