“Minha alma está livre”: a arte como criação inescapável durante o Holocausto

A necessidade da criação artística durante a Shoá superou o instinto de sobrevivência, tornando-se inevitável e urgente

Charlotte Salomon aprendeu a ler seu nome em um túmulo e, desde menina, compreendeu que os mortos fazem parte da vida. Afinal, as mulheres de sua linhagem morriam muito cedo, como sua mãe e sua tia. Anos depois, a guerra a levou a isolar-se e excluir-se do convívio humano. Sentia-se só, confusa e aterrorizada com as ameaças, bombas e canhões, homens que gostavam de guerra (pois existe uma glória em lutar), a perseguição e os assassinatos. Mas, à beira do abismo e sentindo-se condenada, a arte foi capaz de anestesiar toda a dor e morte que a cercavam. Assim, pintou centenas de guaches, todos em vermelho, amarelo e azul.

Charlotte devia viver. Ela devia viver para criar. Pintar para não enlouquecer, para sobreviver. Para isso, deveria pintar sua história, sendo a única saída possível. Caminhando cada vez mais fundo em direção à solidão, considerou a arte como a única possibilidade de vida. Ela, que queria morrer, começou a sorrir. Charlotte podia sorrir e sofrer ao mesmo tempo. Ela sabia o que precisava fazer, a fim de cicatrizar uma vida destruída. Ela levava seu caderno para o ar livre e cantava.

Desde 11 de novembro de 1942, o território francês estava inteiramente ocupado. Todos falavam ininterruptamente sobre a evolução da guerra e Charlotte não suportava mais especulações. Esperavam há quase dez anos por um futuro melhor, mas era sempre o pior que chegava. Ela queria acreditar na liberação. Charlotte era uma jovem de 26 anos e estava grávida. Em 8 de setembro de 1943, ocorreu a rendição italiana e os alemães tomaram o controle. Ela foi denunciada e, no fim das contas, não disse nada. Um homem lhe dirigiu a palavra sem nem mesmo olhá-la. Perguntou seu nome e sobrenome, data de nascimento e com o que ela trabalhava. Ela respondeu: “sou pintora”, antes de ser assassinada em Auschwitz.

A história de Charlotte Salomon foi a primeira contada em um projeto do Departamento de Comunicação do Museu do Holocausto de Curitiba, voltado às redes sociais, que tem o objetivo de reunir criações artísticas e proporcionar um vislumbre da arte criada durante o Holocausto nos guetos, campos e esconderijos. As obras refletem um paralelo dos artistas entre documentar os terríveis acontecimentos sofridos na guerra e o desejo de se libertar deles por meio da beleza, da imaginação e da fé.

Arte e Holocausto

Durante a Segunda Guerra Mundial, decidiu-se localizar, registrar, isolar, desapropriar, humilhar, transportar e assassinar todos os membros de um grupo étnico, em um impulso genocida. As ações não foram realizadas apenas na Alemanha, mas em diversos países europeus. Por isso, a maioria das iniciativas artísticas era uma expressão de necessidade psicológica e social, uma fonte de oxigênio em meio à asfixia, para escapar de uma realidade de horror inimaginável.

Imagem: Acervo Jewish Historical Museum Amsterdam

A barbárie dos campos de concentração marcou também toda a produção da mente, da sensibilidade e da imaginação. Qualquer objeto poderia servir de lápis e qualquer superfície poderia substituir o papel, mas precisava ser registrado. A necessidade de contar a história acabou superando o próprio instinto de sobrevivência, o testemunho tornou-se indispensável e urgente, deveria ser prova e denúncia. No entanto, há um traço distinto nas obras realizadas durante o Holocausto: a criação inescapável, ou seja, aquela à qual a criação escolhe o artista, diferente daquela que o criador decide sobre a obra.

Dentro de um contexto de opressão ou violência, criar é uma das únicas coisas que o indivíduo pode fazer. A criação torna-se uma necessidade, ato inevitável, urgente em si e faz parte da realidade, em seu aspecto mais trágico. É importante ressaltar que o horror, muitas vezes, é uma realidade indizível e que escapa aos artifícios da linguagem. No entanto, quando se discute a estética representativa da Shoá, esta perspectiva é equivocada. Afinal, o extermínio ocorreu porque teve a possibilidade de ocorrer. Então, o retrato da perseguição, do isolamento e confinamento, dos campos, da saudade, da fome, da solidão e da morte de um povo encontra, na arte, um refúgio e uma possibilidade de compreensão e advertência.

Considerando as criações realizadas no Holocausto, como as de Charlotte, é possível visualizar, principalmente, obras que incluem memórias e testemunhos, tanto de sobreviventes quanto dos mortos. E, nesse instante, a transição da arte para o horror ocorre. É a visão mais difícil de suportar da realidade e, assim, o público-observador das criações não consegue sair ileso e sem ser ferido, sentindo desconforto, vergonha, medo ou horror. A escritora e ensaísta norte-americana Susan Sontag defendia que as fotografias são meios de tornar “real” (ou mais “real”) assuntos que pessoas socialmente privilegiadas, ou simplesmente em segurança, talvez preferissem ignorar. Esse argumento explica o dever de retratar o horror da guerra, para acabar com o silêncio, pois ele é cúmplice e, de certa forma, um assassino.

As criações voltam a mostrar que a guerra despovoa, despedaça, dilacera, devasta e arrasa o mundo construído. No entanto, ao tentar representar toda a indignidade e insanidade da guerra, as palavras foram esgotadas e se enfraqueceram. Assim, coube às apresentações visuais o relato das crueldades e, assim como toda imagem, é um convite ao olhar. Segundo Sontag, a imagem da guerra deve estarrecer e, nela, reside um tipo contestador de beleza. Há a preocupação de parecer insensível encontrar beleza em imagens e retratos de guerra, mas a paisagem da devastação ainda é uma paisagem. A ensaísta argumentou: “Existe beleza nas ruínas”.

Além disso, muitos prisioneiros tentaram recuperar suas identidades, outrora apagadas e silenciadas pelo exército nazista, por meio da arte, apesar da proibição de documentar os arredores dos campos e o risco de punições severas, incluindo a morte. Desenhar foi uma resposta, subconsciente e espontânea, sustentada pelos artistas à confusão e ao medo, uma voz contra o terror, as ameaças à humanidade, a perda do individualismo e da independência. Como resultado da tradução e representação da guerra, é possível encontrar o coração e a libertação das almas das vidas que foram perdidas, pois a arte mostrou-se especialmente necessária nesse período, como uma possibilidade de salvar uma parte da dignidade humana.

Retratos de cenas de miséria e ruínas, bem como cenas de bravura e camaradagem, a essência da cultura judaica, cores fortes ou apagadas, a fusão de fantasia, religião e nostalgia, evocam sentimentos de desolação e vazio, solidão e culpa, responsabilidade, ou apenas um reflexo de que algo deveria ser feito para abrigar a memória e os testemunhos. A criatividade, além de ser um caminho inescapável, foi também um protesto. Um protesto no qual foi possível reafirmar existências e a própria vida.

Sobre o/a autor/a

Compartilhe:

Leia também

Melhor jornal de Curitiba

Assine e apoie

Assinantes recebem nossa newsletter exclusiva

error: Content is protected !!
Rolar para cima