Quando a fome bate à porta: estudo mapeia desertos alimentares em Curitiba

Quando a fome bate à porta: estudo mapeia desertos alimentares na metrópole de Curitiba

Priscila Murr e Camila Calaudiano 
Supervisão: Maíra Gioia
Agência Escola UFPR

Desertos Alimentares são regiões nas cidades onde o acesso físico e/ou econômico à alimentação saudável é reduzido ou desigual. O fenômeno tende a intensificar a insegurança alimentar. Sob orientação da professora doutora Olga Lucia Castreghini de Freitas-Firkowski, a arquiteta e Urbanista Marina Sutile de Lima realizou uma pesquisa que representa avanço na sua área. Intitulada “Desertos Alimentares em Curitiba: Espacialização do Fenômeno na Metrópole”, a pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná venceu o XIII Prêmio ANPUR de Dissertações de Mestrado (2022/2023) e revelou que a capital paranaense detém o pior índice de acesso à alimentação saudável da região.  

O termo “Deserto Alimentar” é usado para descrever áreas urbanas ou rurais que não oferecem, aos moradores, opções próximas para compra de alimentos saudáveis.  A discussão tem abrangência internacional, com análises já realizadas no Reino Unido, Escócia e Estados Unidos. 

Nesses estudos, evidencia-se a fragilidade econômica e social de pessoas de baixa renda, que têm dificuldade ainda maior de acessar alimentação saudável, tanto pela falta de supermercados ou outros estabelecimentos comerciais em determinadas áreas habitacionais quanto por falta de veículo próprio para se locomover até os locais de compra, aos quais o transporte público não dá acesso. Tais investigações identificam, ainda, a relação direta entre o fácil acesso a alimentos não saudáveis e a piora dos índices de saúde da população. 

Outros fatores que também entram nessa conta são: a insegurança para se caminhar em determinadas regiões, a ausência de oportunidade para compras devido à jornada de trabalho e a falta de tempo para preparo do alimento. 

As escolhas alimentares da população são fortemente influenciadas pela disponibilidade nas proximidades dos domicílios, de modo que, nas áreas onde as opções alimentares não saudáveis predominam, existem as piores dietas. 

A autora do trabalho realizado na UFPR conta que a pesquisa se propôs a entender a espacialização dos desertos alimentares em Curitiba, “mas não considerando só Curitiba, e sim toda a metrópole”.

Segregação Espacial e Insegurança Alimentar 

Conforme a pesquisa de Marina, os desertos alimentares são a materialização física de parte de um problema maior, que é a crescente insegurança alimentar nas cidades. Entretanto, além das dimensões físicas, há também dimensões sociais, econômicas e culturais. 

Quase 20% dos paranaenses vivem a insegurança alimentar diariamente. Entre os 4,3 milhões de domicílios particulares permanentes do estado, 774 mil registraram algum nível de vulnerabilidade em 2023. Ou seja, 18 de cada 100 lares no Paraná sofreram com situação de risco quanto à qualidade da alimentação diária no ano passado. Os números são do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) responsável pelo estudo “Segurança Alimentar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua”.

De acordo com a dissertação, no Brasil, a segregação social e espacial não se dá somente em função da raça ou etnia. O nível de alfabetização dos habitantes pode tornar a população de baixa renda ainda mais vulnerável em relação à falta de acesso à alimentação saudável. E a pesquisadora alerta: “às vezes, a insegurança alimentar não é a fome propriamente dita, mas a ausência de algum alimento essencial na rotina alimentar daquela pessoa ou daquela família”.

Outros aspectos como gênero e situação socioeconômica, são acrescentados à segregação. “Portanto, é previsível que a existência dos desertos alimentares, por estar associada a aspectos vulneráveis da população, de certa forma, se relacione com a segregação socioespacial nas cidades”, aponta o estudo.

“Morrendo de sede em frente ao mar” 

“A luta pela superação da fome no Brasil envolve a demanda por alimentos, ampliação da renda e melhor distribuição de terra, mas não só isso. O combate à fome tem também um caráter político e deve incluir os agentes que produzem os alimentos e a sociedade que os consomem nas decisões políticas e econômicas”, cita Marina, em um trecho de sua dissertação.

No Brasil, o sistema alimentar está economicamente atrelado ao mercado externo, à produção, distribuição e consumo de ultraprocessados, o que fragiliza a soberania alimentar da população. Nesse sentido, a autora relata como esse sistema alimentar do país “permite” que fenômenos como os desertos alimentares ocorram.    

Mesmo com sua estrutura fundiária baseada no latifúndio e em terras não produtivas, o país é um dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo, ficando atrás apenas da China e dos Estados Unidos (EMBRAPA, 2020). Apesar disso, a insegurança alimentar da população se agrava cada vez mais, chegando a números alarmantes. Dados considerados no trabalho de Marina mostram que o brasileiro está “morrendo de sede em frente ao mar”: o que indica que o sistema alimentar se curva às necessidades do mercado externo, e não às demandas nutricionais e alimentares do seu próprio povo.

A investigação sobre Desertos Alimentares na metrópole de Curitiba 

A ideia dessa pesquisa surgiu ainda durante o trabalho final de graduação (TFG) de Marina. Ela conta que seu TFG foi sobre a inserção da agricultura urbana em áreas chamadas de ‘vazios urbanos’ em Curitiba. “São terrenos ociosos, ou mesmo restinhos de construções e de loteamentos onde não seria possível construir nada, mas que serviriam para plantar alguma coisa e tornar aquele solo útil”, explica.

A partir disso, surge a relação com os desertos alimentares, e o trabalho de mestrado é desenvolvido em quatro etapas: apreensão teórica sobre os desertos alimentares, nos contextos nacional e internacional, a partir da coleta de indicadores e variáveis capazes de mensurá-los (capítulo 2); estudos de caso e pesquisa sobre como o problema dos desertos alimentares tem sido enfrentado em outros locais por meio das ferramentas do planejamento urbano e gestão urbana (capítulo 3); compreensão e aprofundamento sobre os fenômenos relativos à metropolização de Curitiba (capítulo 4); e o desenvolvimento de seis diferentes investigações e análises espaciais sobre o recorte estudado, indicando onde estão localizados e como se caracterizam os desertos alimentares na metrópole de Curitiba (capítulos 5, 6 e 7).

  Com seis eixos de investigação, a pesquisa identificou: 1) o acesso físico a alimentação; 2) a distância entre domicílios e estabelecimentos de vendas de alimentos saudáveis; 3) se áreas com demandas por alimentos têm sido abastecidas; 4) predomínio de estabelecimentos com alimentos saudáveis e não saudáveis; 5) a proporção de estabelecimentos in-natura, ultraprocessados e mistos; e 6) a variedade de alimentos ofertada em comércios de alimentos. 

Há uma medição geral considerada no estudo, que foi feita por meio da relação dos pontos de venda de alimentos saudáveis e da determinação de tempos máximos de viagem para quatro situações de deslocamentos: de carro: 3,5km; de transporte coletivo: 1,5km, mas considerou-se contemplado na análise de distância média aceitável de 1,6km; de bicicleta: 2,5km; a pé: 800m e distância média aceitável: 1,6km.

As verificações constataram que, em diversas áreas, o acesso a alimentos saudáveis só é possível de carro e, em outras, não é viável por nenhum dos meios citados.  Também foram estabelecidos três níveis de Desertos Alimentares: os Leves, Moderados e Graves, o que demonstra que, mesmo tendo dinheiro, para as pessoas dessas regiões, a alimentação saudável não é acessível. 

Da inteligência à fome: o maior deserto alimentar está em Curitiba 

Ao identificar áreas urbanas que não oferecem acesso físico a estabelecimentos de venda de alimentos saudáveis, a investigação revela a espacialização de desertos alimentares em regiões de expansão urbana e grande crescimento populacional, tal qual as regiões Norte (Almirante Tamandaré, Itaperuçu, Rio Branco do Sul) e Sul (sul de Curitiba e Araucária).

A pesquisadora realizou uma somatória de pontos acumulados por município, a partir das seis matrizes de interpretação desenvolvidas.  Esse somatório deu origem ao que Marina chama de “Taxa Municipal de Desertos Alimentares”, uma forma quantitativa de comparar a situação dos municípios.  

A chamada Taxa Municipal de Desertos Alimentares indica justamente que, em Curitiba, o município polo da metrópole, é onde se encontra a maior pontuação e, consequentemente, a maior incidência de desertos alimentares, de acordo com os critérios adotados.

Depois da capital, os oito municípios subsequentes listados são: Campo Largo, Piraquara, Colombo, Almirante Tamandaré, São José dos Pinhais, Araucária, Campina Grande do Sul e Rio Branco do Sul. Porém, no que tange à quantidade e gravidade, a capital representa a região onde a espacialização do fenômeno está mais ativa e recorrente, afetando diretamente a população e gerando altos níveis de insegurança alimentar. 

Por fim, vale ressaltar que, a partir da adequação conceitual e metodológica ao contexto brasileiro, tendo em vista que aplicação desta metodologia ocorria somente em nível internacional, um estudo local aprofundado traz resultados interessantes tanto a nível de curiosidade quanto de aplicabilidade técnica. 

A estudiosa aponta, em suas considerações finais, que os desertos alimentares estão presentes em toda a metrópole – em áreas urbanas e rurais, pobres e ricas, com melhores e piores índices de qualidade urbana. Porém, as áreas periféricas e periferizadas manifestam o fenômeno em sua forma mais grave. Portanto, o processo de arquitetura da cidade e do espaço urbano desempenham um papel relevante na configuração dos desertos alimentares.

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