Não foi uma tragédia: as chuvas no Rio Grande do Sul e a negligência do poder público

Ainda que a crise climática seja uma realidade inescusável, a intensidade no resultado dos eventos climáticos extremos pode ser amenizada

Depois de volumosas e incessantes chuvas, um mar de lama contaminada afetou 397 dos 497 municípios gaúchos, provocando, até o momento, mais de uma centena de mortes e de desaparecimentos; estima-se que 1,45 milhão de pessoas tenham sido afetadas pelas chuvas. Os danos têm, pelo menos, a mesma dimensão da catástrofe, mas levará algum tempo para que sejam seguramente estimados, inclusive porque alguns municípios ainda estão embaixo d’água.

Sabe-se, desde logo, que mais de 80.000 pessoas perderam suas casas e que a infraestrutura do estado, como escolas, postos de saúde, instituições públicas de arte, estradas, abastecimento de água e energia, diques etc., foi severamente afetada. Diversos municípios – alguns dos que têm o turismo como principal fonte de renda, como Gramado, por exemplo – seguirão com a mobilidade urbana comprometida por tempo indefinido.
Segundo dados publicados pela Confederação Nacional de Municípios (CNM) no último dia 7 de maio, o Rio Grande do Sul acumula um prejuízo de R$ 4,6 bilhões.

No último dia 15 de maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a concessão de um “auxílio reconstrução”, a ser concedido a cerca de 240 mil famílias, em uma parcela única de R$ 5.100, para a reposição de equipamentos eletrônicos e outros bens móveis perdidos.

Entretanto, no momento, a miséria humana faz com que as ações se voltem precipuamente a uma solução emergencial, a reconstrução e o financiamento necessário estão em segundo plano.

Contraditoriamente, enquanto o mundo observa o Rio Grande do Sul, aumentam os relatos sobre violências contra mulheres e crianças nos abrigos, que não estão preparados para necessidades específicas de mulheres grávidas e lactantes.

Os saques nas casas evacuadas passaram a ser frequentes em diversos municípios, como relata o prefeito de Eldorado do Sul, razão pela qual alguns moradores insistem em permanecer nesses locais insalubres, muitos deles portando armas irregulares, cenário que assemelha-se a um filme de velho oeste, ou de ficção científica.

Outra medida emergencial refere-se à vacinação e tratamento das pessoas contaminadas pela água tóxica que ocupa o estado; são doenças como a leptospirose, tétano e hepatite A, para as quais faltam antibióticos.

O impacto negativo na saúde mental dos atingidos, dos gaúchos que estão em segurança, e mesmo das pessoas que assistem à distância a catástrofe, que pode também ser classificada como “ansiedade climática”, são inquestionáveis.

Na internet, campanhas de apoio aos gaúchos misturam-se às críticas severas sobre pessoas e empresas que estão, supostamente, “aproveitando-se da ‘tragédia’”, e o governador do Rio Grande do Sul sustenta que “não é hora de procurar culpados”.

Percebe-se, entretanto, que a comoção gerada pelo evento climático extremo que assola o estado e o medo de que se repita, possibilita que questões socioambientais costumeiramente negligenciadas ganhem luz.

Uma pesquisa conduzida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná (PPGMADE/UFPR, 2024), coletou e analisou medidas provisórias, projetos de lei de iniciativa do Poder Executivo Federal e decretos editados pelo Presidente da República, no período de janeiro de 2019 a agosto de 2022 e comprovou que tais atos normativos se voltaram à desarticulação de normas ambientais garantidoras de políticas públicas, e que foram acompanhadas de discursos oficiais de incitação à violação de normas ambientais, e pela inércia no combate a crimes ambientais na Amazônia e contra os povos indígenas.

Essa investigação demonstra que o “desmonte” da legislação socioambiental brasileira impactou diretamente no aumento dos incêndios, desmatamentos, invasões a territórios indígenas, garimpo ilegal e violência na Amazônia Legal no mesmo período, mazelas agravadas pelo surto de Covid-19.

Poucos dias antes do início da catástrofe que draga o estado do Rio Grande do Sul, no último dia 26 de abril, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) enviou ao governador Eduardo Leite (PSDB) um ofício onde enfatiza que a crise climática vinha sendo negligenciada e acentuada pela omissão do governador do estado, destacando:

“(…) a falta de atitudes para estancar e reverter processos que contribuem para o avanço da crise – a exemplo da liberação de mais venenos agrícolas, da autorização para destruir Áreas de Preservação Permanente, da falta de uma política permanente de recuperação de matas ciliares, do incentivo anacrônico à construção de polos carboquímicos e de instalações de infraestrutura que não reconheçam os direitos das comunidades tradicionais, da falta de cuidados e ingerência dos recursos hídricos, entre outros (…)”.

O Tribunal de Contas da União (TCU) aponta que as medidas tomadas em um curto período de tempo pelo governador Eduardo Leite afrouxaram mais de 500 pontos do Código Ambiental do Rio Grande do Sul. Essa redução intencional da legislação protetiva ambiental não é exclusividade do governador do Rio Grande do Sul, embora tenda a receber destaque em momentos climáticos extremos como o que o estado enfrenta.

Tanto no estado do Rio Grande do Sul quanto no âmbito da legislação federal brasileira, o desmonte da legislação socioambiental foi realizado com vistas ao “favorecimento” do segmento do agronegócio. Favorecimento entre aspas, eis que a crise climática é uma realidade inegável e, mesmo os negacionistas – assim conhecidos aqueles que a refutam, têm que lidar com a exigência de adequação imposta pelo mercado global.

Na última coluna falamos sobre greenwashing (em português, “lavagem verde”), um conceito novo que pauta-se, de certa forma, pela antiga retórica de Platão, descrita pelo Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) – Ricardo da Costa, como “a arte de conduzir as almas por meio da palavra” para além dos tribunais e reuniões públicas, que passa necessariamente pela aplicação honesta da palavra.

Em contraposição a Platão, outros pensadores como Córax (c. 490-430 a.C.), percebiam a retórica como a arte da persuasão de qualquer tema, fosse ele verdadeiro ou não; essa uma concepção que se assemelha mais ao contemporâneo greenwashing.
Os malefícios do greenwashing, especialmente para as práticas de ESG, são inquestionáveis, mas seus resultados nocivos, comumente associados à iniciativa privada, podem também ser verificados na esfera pública; inclusive na disputa discursiva que permeia os conflitos socioambientais e os eventos climáticos, a transformar o crime socioambiental da mineradora Samarco S.A. (2015) na “tragédia de Mariana”, e a negligência do governador do Rio Grande do Sul na “tragédia gaúcha”.

Seguindo a maioria das definições, tragédia (do grego antigo τραγῳδία, composto de τράγος, “cabra” e ᾠδή, “música”) é uma forma de drama que se caracteriza pela sua seriedade e dignidade, pondo frequentemente em causa os deuses, o destino ou a sociedade. Trata-se de uma palavra que se pauta em um infortúnio, uma má sorte determinada pela providência divina ou pelas leis naturais.

Em contrapartida, especialistas são uníssonos ao afirmar ser a catástrofe do Rio Grande do Sul um resultado da crise climática, acentuado pela negligência, omissão e redução abrupta das políticas públicas e da legislação socioambiental brasileira pelo poder público. Logo, não se trata de uma tragédia.

Inquestionavelmente, dentre os desafios que o Rio Grande do Sul terá que enfrentar após esse evento climático extremo, constam a revisão, a reconstrução e o fortalecimento da legislação socioambiental, assim como dos órgãos responsáveis por sua fiscalização e aplicação.

De pronto, além de socorrer as vítimas, devemos disseminar informações pertinentes – inclusive adotando a nomenclatura adequada, além de ponderar as razões que levaram a esse resultado catastrófico no Rio Grande do Sul.

Se a crise climática é uma realidade, os resultados dos eventos climáticos extremos podem sim ser atenuados. Para prevenir ou mitigar a crise climática, é necessário proteger a legislação já existente em todos os níveis da Federação Brasileira, impedindo retrocessos socioambientais; além disso, revela-se urgente repensar e regulamentar os planos de mudança do clima e legislações análogas.

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