Rios, Pontes e Overdrives: de Chico Science a Luana Piovani, chegamos à “PEC das Praias”

Em nome do direito individual à propriedade privada, a função social da propriedade é colocada em prova

Rios pontes e overdrives, impressionantes esculturas de lama” anunciava Chico Science com a Nação Zumbi na música lançada no álbum “Da Lama Ao Caos”, em 1994. 

Nascido Francisco de Assis França na periferia de Olinda, em 1966, Chico Science ficou famoso como precursor do movimento manguebeat, antes de falecer precocemente, em 1997. 

Para além das roupas coloridas e da mistura potente dos elementos da cultura pop e da black music com os ritmos regionais de Pernambuco, como o maracatu e o coco-de-roda, Chico Science também se diferenciava pelo conteúdo de suas composições.

Visionário, ele costumava usar metáforas para ilustrar o cotidiano do Recife nos anos 90, sempre questionando concepções desenvolvimentistas e reivindicando direitos socioambientais a partir de uma análise crítica contundente e situada. 

Chico Science tinha um fazer artístico deliberadamente político com o propósito de provocar reflexão e promover transformação social; era um artivista.

“Mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue, mangue!”

As tentativas de apropriação das zonas úmidas brasileiras não são novidade. Com tal intuito foram revogadas quatro resoluções do CONAMA sobre o tema, pelo então ministro do meio ambiente Ricardo Salles, em setembro de 2020. O assédio é frequente, no apagar das luzes, passa-se a boiada.

Talvez o mesmo houvesse ocorrido com a PEC 3/2022, não fosse a celeuma entre o menino Neymar e a atriz Luana Piovani, que o criticou dura e publicamente por sua vinculação à proposta de alteração constitucional conhecida como “PEC das Praias”.

Nessa disputa que também é discursiva, importante jogar luz nas falas misóginas do atleta, que perdeu a possibilidade de argumentar em prol do projeto “Rota DUE Caribe Brasileiro”, para desqualificar o ativismo de Luana Piovani, e ela própria, ao destacar a idade da atriz e um suposto desejo sexual secreto que ela nutriria por ele

A PEC das Praias propõe a revogação do inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal, e do § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de que os terrenos de marinha possam se tornar propriedade particular.

Conforme o art. 2o do Decreto-Lei n. 9.760/46, os terrenos de marinha e seus acréscidos são bens imóveis da União, localizados no continente, na costa marítimas, nos contornos das ilhas e mesmo em margens de rios e lagoas, “em uma profundidade de 33 (trinta e três) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio de 1831”.

A lei faz uso de um critério espacial (33 metros), estabelecido por um critério temporal: a Linha do Preamar Média (LPM) de 1.831, correspondente à média das marés máximas daquele ano. O critério antiquíssimo, acarreta imprecisão na delimitação da LPM.

Como propriedade da União, os terrenos de marinha são administrados pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), e devem possuir autorização de uso do espaço, a discriminação “terreno de marinha” na matrícula do imóvel, além do pagamento de retribuição por uso de bem público, para que sejam considerados regulares. Atualmente, 565.000 imóveis estão registrados como terreno de marinha na SPU, mas estima-se que existam milhões deles.

Para o atual relator da PEC das Praias, o senador Flávio Bolsonaro, não se trata de privatizar a praia, mas de “dar maior segurança jurídica”, especialmente aos ocupantes dos terrenos de marinha, que pelo inciso IV contido no art. 1o do texto proposto, poderiam adquirir a propriedade dessas áreas, ainda que a ocupação esteja irregular. 

Embora no texto não conste o termo “privatização”, na prática é esperado que os resorts e hotéis de luxo limitem o acesso à faixa de areia, restringindo, portanto, o uso público da praia. Além disso, com a aprovação da PEC, são inquestionáveis os danos ambientais, que já de início recairiam  sobre mangues e restingas.

“E a lama come mocambo e no mocambo tem molambo, e o molambo já voou, caiu lá no calçamento bem no sol do meio-dia, o carro passou por cima e o molambo ficou lá”.

As praias são naturalmente móveis, idealmente, vivem em um equilíbrio dinâmico constante, de forma que o processo de erosão é comum na faixa costeira. Contudo, a elevação do nível do mar causada pela crise climática somada à ocupação desordenada da zona costeira, quebram esse equilíbrio, impactando de forma negativa no processo erosivo ao intensificar a redução da faixa de areia.

O remédio natural, que opostamente ao alargamento artificial das faixas de areia da praia, tem custo baixo e efetividade garantida, é a adoção de políticas de preservação e recuperação que beneficiem zonas úmidas como as restingas e os mangues.

A restinga, vegetação litorânea que faz a transição entre a areia e a mata (ou as casas), é fundamental para conter a degradação da praia; suas raízes fixam dunas e retém as partículas de areia que vêm do mar, funcionando como uma barreira para os processos de erosão provocados nos períodos de ressaca.

O manguezal, por seu turno, é um ecossistema costeiro de transição entre a terra e o mar que desenvolve funções ecológicas, econômicas e sociais importantes. Está entre os ecossistemas mais produtivos e biologicamente importantes do mundo, considerado berçário natural e habitat para inúmeros animais, plantas e outros organismos, inclusive para espécies ameaçadas e protegidas.

Restinga e manguezal são classificados como Área de Preservação Permanente (APP) pela inteligência do parágrafo 1º do art. 8º da Lei n. 12.651/2012 (Código Florestal), objeto de especial proteção do Estado (art. 50 da Lei n. 9.605/98). 

Ambos correspondem ao conceito de zona úmida indicado pela Convenção de Ramsar (1971), tratado do qual o Brasil é signatário (incorporado ao sistema pátrio em 1996 pelo Decreto n. 1.905), e que foi concebido para promover a conservação e o uso racional dessas áreas no mundo, dada suas relevantes funções econômica, cultural e recreativa.

Consideradas essenciais para estabilizar as zonas costeiras, as áreas úmidas fornecem água e alimento para uma ampla variedade de espécies, para comunidades rurais e urbanas, e são vitais à adaptação e mitigação das mudanças climáticas em virtude do volume representativo de carbono que armazenam.

Desde a adesão à Convenção, o Brasil promoveu a inclusão de 27 Sítios na Lista de Ramsar, designação que favorece o país no acesso a fundos internacionais para financiamento de projetos e pesquisas ao indicar um cenário de cooperação internacional.

“Molambo eu, molambo tu, molambo eu, molambo tu”

Na música referenciada ao longo deste texto – composta em parceria com Fred 04 na década de 90, Chico Science denunciava a ocupação desordenada da cidade e o avanço sobre o mangue, a despeito do sofrimento dos mulambos que habitam os mocambos.

Em última análise, ao propor a revogação do inciso VII do caput do art. 20 da Constituição Federal, e do § 3º do art. 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a PEC 3/2022 sobrepõe o interesse privado ao público.

Em nome do direito individual à propriedade privada, a função social da propriedade é colocada em prova e o direito transindividual difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no art. 225 da Constituição Federal, é sacrificado.

A PEC 3/2022 foi aprovada na Câmara dos Deputados em 2022 e será submetida à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, uma vez verificada que não há violação à uma cláusula pétrea constitucional, depois de aprovada, ela seguirá para votação em dois turnos no Senado e precisará do apoio de, pelo menos, 3/5 dos senadores para ser submetida à promulgação do Presidente da República.

Diante da repercussão negativa da PEC, por conta da pressão pública (ao meio dia de 04 de junho, a consulta pública no site do senado contabilizava 1.981 votos a favor e 146.542 contrários), o senador Flávio Bolsonaro anunciou que pretende alterar a atual versão da proposta para incluir uma previsão expressa de que todas as praias continuarão acessíveis ao público.

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