Santo Antão

Conta-se em lenda apócrifa que o moço Antão, pés descalços, empunhando velho cajado nodoso e trajando apenas andrajos de pele de carneiro, se encarapitou pelo deserto e se enfurnou numa caverna. Objetivo: refugiar-se contra o pecado, contra a avareza e a luxúria, contra a gula e a vaidade, principalmente contra a vaidade.

Afastado, assim, de todas as tentações mundanas – wifi, cerveja artesanal, boletos volumosos – poderia o talvez-futuro-santo dedicar toda sua vida à contemplação, ao jejum, às penitências e devoções que a Deus tanto regozijam.

Não tardou demasiado, porém, para que o Demônio se sentisse tentado em desviar o homem de sua hagiológica meta, aquele pretensioso homem que, como um lutador de UFC em coletiva de imprensa, tão categoricamente o desafiava.

O Diabo, profundo conhecedor das vaidades e veleidades humanas, não poderia consentir que um homem possuidor de tantas riquezas o renegasse e o esconjurasse daquela forma vexatória e fosse tão abnegado e tão absolutamente destituído dos corriqueiros desejos venais, carnais e de dominância.

Iniciou o Capiroto, portanto, suas inflamadas investidas. Projetou nas paredes da caverna, em 3D e HD, imagens de egípcias belas e nuas, aprumou nas pedras os banquetes mais tentadores, ofereceu ao postulante a asas e auréolas muitos títulos honoríficos e nobiliárquicos. Reeditou tal ofensiva diuturnamente, durante 80 anos.

Mas Antão não arredou pé. Chegou mesmo aos extremos da prática do autoflagelo para que o excruciante martírio corpóreo defletisse sua atenção dos vinhos requintados, doutos títulos e, especialmente, das egípcias belas e nuas. Até que o Canhoto Desviante desistiu.

Antão, ao perceber a resignação do Cão Cornudo, tombou prostrado, exausto e vitorioso. Ergueu as mãos trêmulas aos céus e agradeceu ao Senhor:

— Obrigado, meu Deus, finalmente eu me tornei Santo.

O Tinhoso, acabrunhado no limiar da entrada da caverna onde já ia se preparando para tomar a forma de reDemoinho e dali se escafeder, ouviu de canto de orelha o antonino regozijo e sorriu, ardiloso.

Pôs a mão direita na aba do chapéu, deslizou de ré como se puxado por força invisível, deu uma meia volta em rodopio na ponta de um dos pés, transfigurou-se com um rápido lance de capa e fumaça em sua forma original (a de jornalista) e, após dar duas batidinhas na ponta do microfone que exibia a logomarca de uma grande rede de TV, fez sua primeira pergunta ao enfim sorridente e receptivo Dalton Trevisan.

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