Empreendedorismo ativista: estúdio de tradução em Libras aposta na arte para fomentar o protagonismo surdo

Acessibilidade é um direito que influencia o crescimento da economia surda; no Brasil, são mais de 2,3 milhões de pessoas com deficiência auditiva

O primeiro estúdio de tradução artística em Língua Brasileira de Sinais – Libras no Paraná não apareceu no meio de planilhas com indicadores da viabilidade de um novo negócio. Dá para dizer que a empatia é a mãe e o amor à arte ocupa o papel de pai no nascimento da Fluindo. A ideia foi encampada em 2018 pelos tradutores-intérpretes Jonatas Rodrigues Medeiros, Felipe Patrício e Viviana Tatielle Rocha, ouvintes que se tornaram ativistas pelos direitos da comunidade surda incentivados por laços familiares ou de amizade. 

Durante o caminho anteriormente percorrido, os empreendedores reuniram experiência e conhecimento para mostrar que a tradução da arte não cabe nos moldes tradicionais. “Libras é uma língua visual, corporal, e pensar o corpo enquanto parte da estética era parte do nosso desejo de mostrar a língua de sinais como bela e artística, de traduzir como ato performático”, fala Medeiros. 

Veja a interpretação da canção de Alcione em Libras.

Segundo o intérprete, “historicamente o público surdo não ocupou os espaços artísticos, portanto, o acesso de hoje não garante participação”. Inverter esse quadro com sentimento de pertencimento foi outra motivação dos empreendedores, o que passa pela necessidade de aumentar o hábito cultural entre os surdos. O estúdio tem feito sua parte com serviços de acessibilidade que atendem teatro e audiovisual, festivais e eventos de arte, entretenimento e educação. Em vídeo, produzem materiais didáticos, livros acadêmicos, publicidade e campanhas políticas, sempre em Libras. 

Libras e protagonismo surdo

Desde a abertura, o crescimento foi exponencial e a agenda já é a mais concorrida em Curitiba. No primeiro ano, o trabalho todo era apenas quatro peças teatrais, agora são 70. Hoje, anualmente, são mais de 100 horas de serviços em filmes e outros materiais audiovisuais, e 300 horas em cursos. Na categoria grande porte, foi a quarta vez que a Fluindo participou do Festival de Curitiba e a primeira em que assumiu uma produção no evento, a da 1ª Mostra Surda de Teatro do Brasil – com direção e curadoria da artista e intérprete-tradutora surda Rafaela Hoebel, ao lado de Medeiros. Ainda em junho, a equipe estará no festival Olhar de Cinema pela sétima vez, com tradutores-intérpretes em seminários e oficinas. 

Tudo isso seria o suficiente para muitos, mas para o trio não é. Então os trabalhos também buscam dar protagonismo aos surdos. Os sócios explicam que também são a primeira produtora paranaense de arte surda, com trabalhos autorais e coprodução de espetáculos, filmes, Slams, além de festivais e mostras. Cada projeto tem pessoas surdas em todos os processos, da criação à execução. Em 2024, já foram finalizadas quatro produções autorais, duas estão em fase inicial e três em planejamento.

E o protagonismo não é exclusivo para palcos, câmeras e bastidores, no mercado da acessibilidade linguística da empresa há trabalho para surdos consultores e tradutores, na modalidade feedback (espelho, do português oral para Libras sinalizadas) e da Libras para outras línguas de sinais. 

Para abrir cada vez mais espaços desses, a Fluindo conta com parcerias importantes, como firmada com a Sala 603, que dividiu com o estúdio a produção do espetáculo “Surdo, logo existo” (inteiro em Libras, com atores surdos, escrito e dirigido pela artista surda Gabriela Grigolom junto com Medeiros) e da Mostra no Festival de Curitiba; e a com o Sindicato dos Artistas e Técnicos do Paraná (Sated/PR), importante nas iniciativas de profissionalização.

Economia surda

É o senso de coletividade que guia os negócios. Os fundadores do empreendimento contam que artistas e profissionais que passaram pela Fluindo colaboram no surgimento e crescimento de outras empresas no segmento. Isso não é visto como ameaça, pois os ideais e o potencial do mercado afastam receios. “Reconhecemos que há uma economia surda, na educação, na arte, no turismo, comércio; uma economia que é muitas vezes lida dentro do assistencialismo ou contrapartidas, entretanto que contribui para a circulação de renda, é genuína e real”, diz Medeiros. 

Para dimensionar a capacidade de consumo e as demandas da comunidade surda, é interessante observar alguns dados. O Relatório Mundial da Audição da Organização Mundial da Saúde (OMS) do ano de 2021 indica 1,5 bilhão de pessoas com algum grau de ganho surdo (expressão preferida pela comunidade surda em substituição a perda auditiva). Em 2019, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) aponta 2,3 milhões como número de pessoas com deficiência auditiva no Brasil. Quase uma década antes, o Censo Demográfico do IBGE de 2010 mostra cerca de 100 mil paranaenses com grande dificuldade e quase 19 mil surdos; em Curitiba, a soma desses dois grupos era de 17 mil pessoas. Os números certamente já são maiores hoje, pois a tendência é de crescimento e a estimativa da OMS é de que uma em cada quatro pessoas no planeta terá algum ganho surdo até 2050. 

É óbvio que a equidade não avança na mesma velocidade dos números. Enquanto os idealizadores da Fluindo “fomentam diversas linguagens artísticas em Libras, feitas por surdos, de surdo para surdo”, o mundo continua a ser feito por ouvintes e para ouvintes, principalmente nos países em desenvolvimento. A World Federation of the Deaf (WFD, Federação Mundial dos Surdos), por exemplo, trata como prioridade a promoção do direito à língua gestual e o acesso dos surdos à educação e informação nesses países. 

Avanços

Todavia, alguns avanços aconteceram em nosso país nas últimas décadas, entre eles está o reconhecimento oficial da Libras como meio legal de comunicação no Brasil a partir de 2002 e a aprovação da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) de 2015, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, tornando obrigatória a acessibilidade na educação, trabalho, transporte, saúde, esporte, turismo, cultura e lazer. 

Medeiros ainda destaca a importância de outro mecanismo recente para dar protagonismo aos surdos na economia da criativa: “A Lei Paulo Gustavo (LPG) foi revolucionária do ponto de vista das políticas afirmativas e de cotas para diversidade.” A Lei Complementar nº 195/2022, ou LPG, exige acessibilidade nos projetos culturais, com ao menos 10% do valor do orçamento direcionado para isso, e ações afirmativas, com estímulo ao protagonismo de agentes culturais e equipes compostas por grupos minorizados, como pessoas com deficiência (cotas, pontuação diferenciada, e editais específicos, por exemplo).

Leia também o perfil: Jonatas Rodrigues Medeiros tem a ousadia de ser um ator em Libras

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