Filme paranaense sobre vítima da ditadura tem estreia nacional

Uma história da época da ditadura é o tema de um filme paranaense que estreia no dia 22 em diversas cidades do Brasil. “Entrelinhas”, dirigido por Guto Pasko, conta como uma garota de 18 anos passou a ser perseguida pelo […]

Uma história da época da ditadura é o tema de um filme paranaense que estreia no dia 22 em diversas cidades do Brasil. “Entrelinhas”, dirigido por Guto Pasko, conta como uma garota de 18 anos passou a ser perseguida pelo regime militar depois de ter a irmã presa.

A história se baseia na vida de Ana Beatriz Fortes, que aos 18 anos viu sua irmã Elizabeth ser levada para um presídio pelo governo Médici. Os militares desconfiam que ela também pratica atividades subversivas e armam uma emboscada para a garota, que acaba sendo detida numa delegacia onde é torturada durante dez dias.

Embora seja levemente ficcionalizada, a história se mantém bastante fiel aos fatos do período. Guto Pasko, que já tem uma carreira sólida no cinema e na tevê, conta que foi difícil conseguir orçamento para tornar tudo verossímil, inclusive com o uso de aviões do período.

Em entrevista para o Plural, Pasko conta mais sobre Entrelinhas, que estreia em 22 de agosto em Curitiba e diversas outras praças.

Qual é a história real que embasou o roteiro? Como vocês tomaram conhecimento dos fatos?

A história de “Entrelinhas” se passa no ano de 1970. Nesse momento o presidente do Brasil era o General Médici e os cinco anos que ele comandou o país, são historicamente conhecidos como os mais violentos do regime.

Foi no início dos anos 70 que os militares apertaram o cerco com perseguições mais duras, com desaparecidos, exilados e muitas mortes. A ordem era exterminar os grupos de resistência e guerrilhas, fossem urbanos ou rurais.

Vivíamos o chamado “Milagre Econômico” com o PIB supostamente em franco crescimento anual e grandes obras de infraestrutura, fatos que eram propagandeados exaustivamente pelo governo, até como forma de criar uma cortina de fumaça aos reais problemas do país, sobretudo, mascarar a repressão violenta que impunham no Brasil.

Era a fase da frase que se eternizou na memória histórica do país: “Brasil. Ame-o ou deixe-o”. Muitos não escolheram isso, mas foram obrigados a deixá-lo.

Neste momento, a nossa personagem real inspiradora para o filme, Ana Beatriz Fortes, é uma adolescente de 18 anos, estudante secundarista de uma escola pública em Curitiba. Ela tem uma irmã um pouco mais velha, Elizabeth Franco Fortes, que está cumprindo pena de 18 meses no presídio do Ahú em Curitiba porque fazia parte do movimento estudantil paranaense.

Elizabeth Franco Fortes, a Beth, foi presa num congresso clandestino dos estudantes realizado em dezembro de 1968 na Chácara do Alemão em Curitiba, numa operação dos militares chamada de Pente Fino.

E é nesse momento em que Elizabeth Franco Fortes está presa apenas por ser uma líder estudantil da UFPR que começa a nossa história com Ana Beatriz Franco Fortes, a Beatriz, personagem protagonista do longa-metragem “Entrelinhas”.

Como a irmã mais velha está presa e as duas eram muito apegadas, ela vai todo domingo visitar Elizabeth no presídio do Ahú. Os militares e o DOPS de Curitiba continuam na caça de outras lideranças estudantis e desconfiam das constantes visitas de Beatriz ao presidio e passam a monitorar os passos dela até a atraírem para uma proposta de emprego numa estatal, onde é presa e torturada por 10 dias na Delegacia do DOPS de Curitiba, no Quartel General do Exército Brasileiro em Curitiba e no Batalhão de Fronteiras do Exército em Foz do Iguaçu sob suspeitas de pertencer a uma célula da VAR PALMARES – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.

A forma como essa história chegou até minhas mãos é muito peculiar. Em 2005 eu estava na Ucrânia produzindo e dirigindo o longa documental “Made in Ucrânia”, e no dia 24 de agosto daquele ano, após um dia intenso de filmagens na cidade de Kiev / Kyiv, ao retornar ao hotel com a equipe, casualmente, encontro no saguão do hotel um amigo do Brasil, Vitório Sorotiuk, fazendo check-in. Fomos jantar juntos naquela noite e já na madrugada do dia 25 de agosto de 2005, após algumas doses de vodka, ele vira-se pra mim e diz: “Guto, já que você trabalha com cinema, vou te contar uma história que daria um belo filme”. E então passei o resto da madrugada ouvindo a história da Ana Beatriz Fortes.

Vitório Sorotiuk foi ninguém menos que o presidente do DCE da Universidade Federal do Paraná e conhecia essa história a fundo porque a irmã da nossa personagem protagonista (Elisabeth) era sua colega de universidade e ambos haviam sido presos juntos em 1968 na Operação Pente Fino pela ditadura no tal congresso estudantil clandestino na Chácara do Alemão. Elisabeth Franco Fortes foi condenada a 2,5 anos de prisão pela ditadura e, em função disso, Ana Beatriz sempre a visitava no presídio do Ahú em Curitiba, o que acabou gerando desconfiança dos militares que ela pudesse estar envolvida em movimentos estudantis subversivos, acharam que ela fazia parte de uma célula “terrorista” que existiu no oeste do estado, o que ocasionou o sequestro e as torturas dela por engano.

O Vitório estava certo. Havia ali uma grande história para um filme.  Quase 20 anos depois, aquela conversa inesperada na capital ucraniana chega finalmente aos cinemas.  

O que na trama é real e por que foi necessário ficcionalizar a história?

O grande desafio que sempre temos com histórias reais é como transformá-las ou transportá-las de forma potente para as telas. Uma coisa é a história, outra é o filme. E neste momento, temos sempre que priorizar o filme.

“Entrelinhas” é um longa-metragem inspirado em fatos reais. A estrutura do filme, a linha narrativa central é sim a história real ocorrida com Ana Beatriz Fortes, mas com elementos também ficcionalizados, porém, todos embasados no contexto histórico e político daquele momento.

Minha maior preocupação era fugir do didatismo histórico e focar no drama humano da personagem Beatriz. Muitos dos fatos históricos reais estão plantados nas entrelinhas do roteiro.

Um exemplo da ficcionalização são as torturas que ela passou. Boa parte da violência física real que aconteceu com Ana Beatriz Fortes eu transferi para o corpo de um homem, para não expor tanto um corpo feminino na tela, primeiro em respeito à própria personagem real, segundo para não dar margens para o fetichismo de alguns com algo tão sério. Estamos falando de uma jovem de 18 anos.

Como foi rodar um filme de época em Curitiba? Quais as dificuldades de cenário e direção de arte?

O desafio foi grande. Naturalmente, tivemos que reproduzir todos os cenários, objetos e figurinos.

A Direção de Arte foi assinada por Isabelle Bitencourt, profissional com grande experiência no mercado. O trabalho dela foi incrível. São mais de 40 locações no filme. E tivemos dificuldades para encontrar edificações reais críveis para essa quantidade enorme de cenários. Então o caminho escolhido foi cenografar boa parte das locações. A Delegacia do DOPS de Curitiba, as celas do DOPS, celas do Quartel General do Exército em Curitiba, celas do Batalhão de Fronteiras do Exército em Foz do Iguaçu e Enfermaria do Hospital Militar, são alguns exemplos disso.

Apenas em termos de figurinos, foram 180 peças que tiveram que ser criadas e boa parte confeccionadas, sobretudo as vestimentas militares, já que filmamos no período da “era mitológica brasileira” e seria impossível conseguir qualquer tipo de apoio naquele momento das estruturas militares oficiais.

Esse desafio se deu também com os veículos de cena militares, que tivemos que garimpar junto a colecionadores. Alguns veículos tiveram que vir de fora. Um deles viajou 500 quilômetros até Curitiba.

Uma das principais cenas do filme acontece num sobrevoo nas Cataratas do Iguaçu, então tivemos que conseguir aviões da época também.

Mas também usamos muitas edificações antigas da cidade para cenários do filme, como por exemplo, o Prédio Histórico da UFPR, as fachadas da Reitoria e da Biblioteca Pública do Paraná, Campus Agrárias da UFPR, ruas do centro histórico etc. A UFPR foi grande parceira do projeto. Vale ressaltar que a própria universidade é também personagem do filme, já que tudo aconteceu com estudantes vinculados com a UFPR.

Todo esse esforço foi compensado com o Prêmio de Melhor Direção de Arte para Isabelle Bitencourt no festival de estreia do filme, CINE PE 2023. Além desse, o filme levou mais quatro prêmios no mesmo festival: Melhor Direção, Melhor Atriz, Melhor Montagem e Melhor Edição de Som.

Qual foi o orçamento do filme, e de onde veio o financiamento?

Em dinheiro foram investidos R$ 3.267.000,00 e os recursos vieram de uma linha de investimento do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA, junto ao Banco BRDE. Mas o custo do filme foi maior que isso, pois não estão computados os valores de apoios e parcerias, que somados, fazem o custo do filme chegar nos R$ 5 milhões. Um dos apoiadores grandes foi a Canon, que entrou com uma câmera HDR, monitor HDR e lentes. Só aqui estamos falando de um aporte considerável por parte deles.

De qualquer forma, por ser um filme de época, com elenco e equipe enormes (39 atores / 130 profissionais) trata-se de um filme de baixo orçamento. Mas demos conta.

O Brasil completou 60 anos do golpe de 64, e a Presidência de Lula praticamente vetou a discussão do tema pelo poder público. Por que é ainda importante voltar a esses temas?

Embora baseado numa história real que se passada em 1970 no período da ditadura militar, a minha justificativa principal para o filme ter sido produzido é falar do Brasil de hoje, sobre esse momento de polarização insana que o país tem atravessado nos últimos tempos, inclusive com parcela significativa da sociedade até mesmo desejando o retorno do regime militar, como vimos nos atos antidemocráticos do dia 08 de janeiro de 2023. E é simplesmente lamentável a postura do Presidente Lula de vetar essa discussão justamente quando se completou 60 anos do golpe de 64, com a tentativa de um novo, inclusive.

A ditadura militar no Brasil é uma história ainda muito recente. É preciso sim resgatar e refletir sobre como esse período ditatorial contribuiu e influência principalmente na nossa sociedade de hoje – tanto política quanto socialmente.

E é também verdade que o assunto da ditadura não é novo na nossa filmografia. O cinema nacional já retratou (e muito bem) a ditadura militar, mas geralmente com histórias de pessoas que tinham alguma importância ou envolvimento direto histórico-político contra o regime, que eram lideranças ou personalidades na ocasião, como, por exemplo, o filme “Marighella” de Wagner Moura, uma das mais recentes produções nacionais com essa temática.

É um filme que aborda contextos históricos, mas também é sobre os brasileiros “anônimos” de ontem e de hoje – que foram e continuam sendo vítimas da violência e repressão – pois essa ferida ainda continua aberta nas entranhas do país.

Entender o processo de democratização do Brasil vai além de questões partidárias e ideológicas. É saber sobre nossa própria identidade paranaense e brasileira. E isso independentemente das ideologias pessoais dos espectadores, pois o filme não é panfletário, não levanta bandeiras específicas e sim expõe os fatos e trabalha com o contraditório.


E a repressão passou pelo Paraná tanto em termos de resistência como em termos de ação do Estado, sendo o nosso estado um dos cernes da ditadura, mas parece que o assunto é totalmente desconhecido ou ignorado por aqui.

Esse tema voltou a ser pauta da sociedade, por isso é fundamental que o cinema também aborde o assunto, com novos recortes. Esperamos que “Entrelinhas” possa contribuir de forma positiva para esse debate. 

O país teve recentemente um presidente que louvava torturadores e a própria ditadura. Isso influenciou na decisão de vocês de falar do assunto?

Sim e não. Não porque o projeto nasceu antes de entrarmos na “era mitológica brasileira”.

Como disse acima, essa história chegou em minhas mãos lá em 2005. E a decisão de fazer o filme veio quando Dilma Rousseff estava na Presidência da República, quando ela pautou novamente o assunto da ditadura militar com a Comissão da Verdade.
Então me pareceu pertinente naquele momento tirar essa história da gaveta. Mas todos sabemos que leva anos para que uma produção cinematográfica se concretize. Foram nove anos para viabilizar o filme e as dificuldades de levantar o financiamento vieram justamente em função da temática. Chegaram inclusive me acusar em determinado momento no mercado de eu estar querendo fazer esse filme para enaltecer a história da Dilma Rousseff, já que ela foi integrante da VAR-Palmares e a nossa personagem protagonista foi acusada justamente de ser parte de uma célula da organização na região de Foz do Iguaçu. Mas tudo não passou de uma grande coincidência.

O projeto do longa-metragem foi inclusive contemplado no Edital do Programa Petrobras Cultural naquele momento e o contrato de Patrocínio da Petrobras para o filme foi rescindido no Governo Temer.

Quis o destino que esse filme acabasse sendo produzido justamente no período mitológico brasileiro e que chegasse aos cinemas agora, num momento de polarização e turbulências políticas. Espero que ele cumpra a sua função no mercado e na sociedade.

O Brasil tem tido pouco investimento em cinema. Vocês têm sido uma exceção ao conseguirem manter uma produção contínua. Qual é o truque?

Não há truque! Há sim muita resiliência e trabalho. É quase uma insanidade ser produtor de cinema no Brasil, ainda mais fora do eixo Rio-São Paulo. É uma constante gangorra e os desafios sempre crescentes.

No nosso caso na GP7 Cinema, a regularidade de produção não é aleatória, faz parte de uma estratégia de gestão.

A GP7 Cinema foi fundada em 2001. Nestes 23 anos de atuação, desenvolvemos uma estrutura para atender projetos audiovisuais de variados portes e tipologias, contando com uma ampla rede de artistas e técnicos colaboradores em vários cantos do Brasil e no exterior, consolidando nessa trajetória uma grande experiência e um portfólio com 64 obras audiovisuais produzidas e lançadas de diferentes tipologias, entre longas, telefilmes, minisséries, séries de TV e reality show.

Estruturamos um modelo de negócios que tivesse viabilidade e sustentabilidade mínima no decorrer do tempo. Trabalhamos com o conceito de carteira de projetos. Atualmente temos 42 projetos de diferentes tipologias em andamento dentro da produtora, em diferentes etapas. Alguns na fase de desenvolvimento em sala de roteiros, outros em captação de recursos, outros em produção e finalização ou em lançamento, como é o caso do “Entrelinhas”. Também fazemos a comercialização de muitas das nossas obras no mercado.

Não é possível ter uma produtora minimamente sustentável no Brasil com apenas um ou dois projetos embaixo do braço. É preciso pensar como negócio, empreendimento. É o que temos tentado.

Neste momento estamos investindo em parcerias de coproduções internacionais. Já produzimos um longa-metragem ficção com a Argentina e neste momento temos um longa-metragem ficção em andamento com a República Dominicana e França e outro com a Espanha, além de um projeto em negociação com o Chile. Essa é uma das estratégias para se levantar os recursos também. Buscar pelo menos parte do dinheiro fora, já que no Brasil os investimentos são sempre limitados e oscilantes de governo a governo.

Continuaremos na teimosia por aqui. Desistir nunca foi e nem será uma opção.

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4 comentários em “Filme paranaense sobre vítima da ditadura tem estreia nacional <div class='awpa-single-post-star-variation' attributes='[{"ratings":{"id_5939":5},"sum":5,"count":1,"avg":5,"people_count":{"count_5":1}}]' show_star_rating='1' rating_color_back='#EEEEEE' rating_color_front='#ffb900' rating_type='5' show_avg='', show_star_type='' show_votes='' star_size='x-small'></div> ”

  1. Parabens, Galindo, pela escolha do assunto e pela entrevista. Vou aumentar minha contribuição monetária para o Plural para provar que gostei. Cesar.

  2. Estamos numa ditadura muito pior do que no regime militar. A ditadura do judiciário já matou, calou e sentenciou pessoas inocenta à morte!

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