Martha Batalha escreve sobre o país do desencanto com humor e afeto

Personagens do romance "Chuva de papel" continuam levando suas vidas mesmo sem querer continuar, e isso é bom

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“Chuva de papel”, de Martha Batalha, fala de um Rio de Janeiro que já não existe mais e também de um Rio de Janeiro que persiste. Ela escreve com afeto sobre as pessoas que habitam a cidade e sobrevivem a ela. Às vezes, contra a própria vontade. Como é o caso do protagonista, o jornalista Joel Nascimento, que logo na abertura do livro tenta se suicidar e falha miseravelmente.

Escrito no estilo bem-humorado e elegante de Martha Batalha, “Chuva de papel” é também sobre o jornalismo das antigas, quando repórteres palmilhavam a cidade apurando (e às vezes fabricando) pautas. 

“Chuva de papel”

Joel sobrevive, mas fica quebrado e, graças à boa vontade de um ex-pupilo, acaba morando de favor no quarto de uma tia dele, uma mulher chamada Glória. Que é, fique sabendo, a melhor personagem da história: engraçada, inteligente, corajosa. Ela nunca faz drama e tem a ambição de escrever um livro de memórias. Glória aceita o hóspede porque o sobrinho tinha dito que Joel era um “escritor importante”, mas sem mencionar que ele escrevia para jornais. 

O livro intercala esse momento presente – no Brasil de 2020 – em que Joel está na casa de Glória e vários momentos passados da vida que ele levou como jornalista antes de se aposentar. (Nesse caso, não seria estranho pensar que o que resta a Joel, mais do que a glória do passado, é a Glória do presente.) 

Os dois se provocam o tempo inteiro e não parecem ir com a cara um do outro. Se “Chuva de papel” fosse uma comédia romântica, eles com certeza ficariam juntos no final. Como Claudete Colbert e Clark Gable em “Aconteceu naquela noite” (1943). Gable, aliás, era um jornalista nesse filme.

De outro tempo

Para Joel, a televisão acabou com os jornais impressos. “Ninguém mais lê”, diz ele. Esse comentário trivial poderia passar batido em meio aos ótimos diálogos do livro, mas ele revela algo importante sobre Joel: ele é de outro tempo. E talvez tenha parado no tempo. Os jornais impressos tiveram várias outras crises depois da televisão. Hoje o problema tem mais a ver com distribuição de conteúdo e redes sociais. Até os telejornais estão em crise. E Joel parece alheio a isso tudo.

Ter escolhido um jornalista mais velho como personagem dá a Martha Batalha a possibilidade de falar do Brasil com um desencanto profundo. Porque há um desencanto que parece fazer parte da profissão. Um desencanto que é também, talvez não seja um exagero afirmar, do país inteiro.

Martha Batalha

A própria Martha Batalha também foi jornalista e trabalhou em veículos cariocas antes de se tornar editora e depois escritora. Ela é autora de “A vida invisível de Eurídice Gusmão”, que foi adaptado para o cinema por Karim Aïnouz e venceu o prêmio de melhor filme na mostra paralela Um Certo Olhar, do Festival de Cannes em 2018.

Se fosse feito só de desencanto, “Chuva de papel” seria difícil de ler. Mas há muito mais no livro e nos personagens que faz você gostar da companhia deles. Do convívio com eles. Porque são resilientes e têm senso de humor. Porque continuam com suas vidas mesmo sem querer continuar. Mesmo quando parece que eles não têm motivo para continuar. E existe algo aí. Algo bem brasileiro.

Livro

“Chuva de papel”, de Martha Batalha. Companhia das Letras, 224 páginas, R$ 64,90. Romance.

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