No fundo do peito tem uma areia escura

Eduardo Feliz, como assoviasse suas memórias em Uma manhã qualquer, ou embalado pelo vento destas, não pede licença. Já chega com os dois pés na porta: “Não peço que me ame / mas abra o portão / meu beijo não […]

Eduardo Feliz, como assoviasse suas memórias em Uma manhã qualquer, ou embalado pelo vento destas, não pede licença. Já chega com os dois pés na porta: “Não peço que me ame / mas abra o portão / meu beijo não foi sancionado / mas abra o portão / não tenho medo de portão aberto / diante dele / desprotegido dos insultos imaginados / ignoro a precaução // entro”.

Areia Escura (Mondrongo, 2024) é uma espécie de continuação de seu primeiro livro de poemas, Setra, alçado à luz em 2023 pela mesma e distinta editora baiana de Itabuna. Mas tem vida e densidade tais e quais distintas. A violência destas “desmemórias” alcança primeiro a quem conhece o autor. A quem ainda não foi apresentado, o aperto de mão pode soar forte demais, sem muito modo ou cerimônia.

Na arte do teatro, há quem diga que existe na persona do ator uma “zona escura”, que é o local onde o diretor não entra. É ali que, em corpo e alma, o intérprete acende o fogo de seu repertório pessoal, que depois entrega em cena. A “areia escura” de Eduardo Feliz pode ser amparada em tal metáfora, substituindo aqui o palco pela página branca que preencheu, com olhos de quem avista embarcações no mar bravio da lembrança, e as descreve, feito desenhasse paisagem.

Como percorresse A pé na garoa, vem de súbito algo que nos é comum, neste pedaço do sul, a famigerada “Neve, tão rara aqui / vi uma vez quando o céu / era perto / a lua explodindo em cacos // Romeiros / à janela / ao jardim / à calçada / ao ônibus / ao centro / onde todos estavam”. Feliz (o Eduardo) é aquele que de “Um vento profundo / arranca resmungos e dispersa-os”, para depois “De volta para casa / tiro o gorro / casaco, sapato / antes pingado de lua / agora, lama ordinária”. Certo, ninguém é profeta em sua terra. Mas é poeta quando invés do futuro acerta as contas com o retrovisor de um carro em alta velocidade.

Parece que foi ontem, quando em um Abraço, “Depois do último gole de saquê / procurei a beirada da cama para tirar a roupa / bêbado / embrulhando todas as peças // Não quero dormir / sob lençol espero teu corpo / chegar por inteiro”.

Foi forjado em sangue, suor em lágrimas este, que o próprio autor entrega como um “livro estendido” na breve introdução. E sem delongas já vai avisando, em Outro Aviso: “Não voo mais / coisas somem, coisas surgem / minhas patas não carregam pólen / Não fodo mulheres / que devoram cabeças”. Aos desavisados, outras paisagens vão-se formando, esvaindo, sobressaltando, como são assim mesmas as memórias não-fotográficas, mas em tinta guache, eu diria, de uma vida inteira.

Ao que importa, aquilo que é senso comum quando o assunto é poesia, de que a combinação imagem-sentimento é o que pega o leitor, é preciso: sublime os poemas de Areia Escura. Ilustrados genialmente por ninguém menos que Denise Roman, e com trilha sonora sugerida pela amiga gastrônoma de delícias Elaine Minhoca de Lemos. Perfeito.

Eduardo José Nicolau feliz guardou por muito tempo, na gaiola insana de sua cachola atormentada, estes versos, que agora deixa caminhar entre os passantes no intervalo de dois anos em dois livros de rara beleza e formatação precisa e consistente.

Sem ilusionismos, só a vida real. Ele não está de brincadeira. Rara surpresa tanto para quem o conhece quanto para quem sentiu este bruto aperto de mão. Muito prazer. Sou Feliz, mas pode chamar de Areia Escura. Do fundo do peito.

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