Estava completamente absorto. Abri os olhos, turvos pelo impacto do momento, e percebi meu corpo abandonado. Senti como que um veneno oprimindo as veias, um fogo abrasador que não me deixava dúvidas. Depois de muita espera, tinha começado. Fechei os olhos e deslizei.
Ouvia os cantos, rezas que invocavam os espíritos da floresta, e me entreguei. Primeiro, vi a cobra. “Venha”, disse, enquanto me acompanhava para o outro lado. “Fique tranquilo”. Lembro que tentei respirar mais fundo, talvez um mecanismo automático para controlar a ansiedade.
Tinha a certeza de que aquilo que me acontecia não era um pensamento. Também estava longe de ser simples imaginação. Eu não arquitetava, não criava. Apenas era confrontado por uma verdade sagrada e inviolável cujo acesso só era permitido na outra dimensão. Imagens despencavam como se existissem por conta própria. Eu era insignificante. Um observador dentro de mim mesmo.
Agradeci pela oportunidade de estar ali. O caminho começou quando inculquei na cabeça que faria um trabalho sobre a ayahuasca, misteriosa bebida indígena que me despertava interesse há tempos. A decisão foi pouco mais de um ano antes, em 2018, com a necessidade de escolher um tema para o Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo. Depois de meses de enrolação e leitura sobre o assunto, me preparava para tomar a substância pela primeira vez na vida. Seria na terceira semana de maio, a mais fria do ano.
Conheci o evento por meio do Eduardo, um talentoso baterista que fazia tratamento com ayahuasca na tentativa de se livrar do vício em álcool e cocaína. Contou que um pajé do povo Huni Kuin (kaxinawá), nativo da Amazônia acreana, esta va em Curitiba para conduzir um ritual xamânico baseado na consagração de três medicinas: ayahuasca — que eles chamam de nixi pae —, rapé e sananga. Cobrava-se um valor de R$ 150. Como custearia a estadia do pajé e de três indígenas que vinham com ele, achei justo. Eu teria contato com a fonte da ancestralidade brasileira sem cruzar o país inteiro. Uma oportunidade irrecusável.
Procurei seguir as orientações básicas propostas pelo pessoal da Samaúma Saberes Ancestrais e do Projeto Kumã Isku, grupos que faziam toda a organização. Diminuí a quase zero o consumo de carne, açúcar e alimentos gordurosos nos três dias anteriores à cerimônia, que seria realizada na noite de sábado. Não ingeri álcool e nem utilizei outras substâncias psicoativas. Passei o sábado todo bebendo água. Estava tranquilo.
Coloquei blusa e calça de moletom, as roupas mais confortáveis que encontrei, e fui atrás de cobertor, almofada e colchonete. Saí por volta das 21 horas. Minha mãe, evidentemente mais nervosa que eu, tinha oferecido carona até onde aconteceria o ritual — uma chácara localizada no município de Piraquara, a 22 km da Capital. Éramos quatro: eu, ela, o Eduardo e o Vitor, amigo próximo e estudante de Publicidade e Propaganda que também nunca tinha participado do ritual.
Imaginei um ambiente completamente rural, intocado pelas luzes da civilização, mas a chácara não era muito afastada da cidade. Não vi o coração verde desenhado na entrada, de talhe ressaltado nas instruções de como chegar, mas não tive dúvidas de que era ali. Quando chegamos, às 22 horas e alguns minutos, o pátio frontal que servia de estacionamento já estava meio cheio. Tentando disfarçar a apreensão, minha mãe se despediu de cada um com um beijo e um desejo de boa experiência. Ela tinha me apoiado desde o início porque sabia que era parte fundamental do trabalho acadêmico, mas presumo que não teria recebido a novidade de bom grado se meus motivos fossem outros.
A casa, toda pintada de azul, era típica de chácara. Grande, espaçosa e um tanto rústica, com algumas lamparinas e um jardim diverso. Fomos à porta com cuidado. Duas pessoas, que conversavam à luz da lareira, nos apontaram o terreno dos fundos.
Depois de um pequeno caminho trilhado, avistamos a in confundível estrutura de alvenaria. Era circular, imponente. Para proteger os participantes do frio, ainda mais naquela que seria a noite mais gelada de 2019, foram colocadas várias cor tinas azuis entre as colunas laterais que sustentavam a enorme abóbada de madeira. Entramos.
Ainda faltava muito tempo para o início, previsto para as 23 horas, mas a extremidade do círculo já estava quase toda ocupada. O melhor lugar, já que era o único em que era possível encostar as costas para ter o mínimo de conforto. A maioria das pessoas estava acomodada. Alguns deitados e cobertos, a verdadeira expressão do sentir-se em casa, outros encostados na borda da estrutura. Na hora, me senti despreparado. Meu colchonete não era grande o suficiente para que pudesse ficar deitado sem contato com o chão. Tinha pensado que poderia precisar de um maior, mas não achei outro para comprar de última hora e tive de me contentar. “Eu sabia”, lamentei.
Achei um lugarzinho, provavelmente o último com encosto, do lado direito do irmão do pajé. Os quatro indígenas ocupavam um espaço de destaque, na reta de quem entra no círculo. Sentavam nas únicas quatro cadeiras disponíveis e suportavam o clima sulista enrolados em mantas coloridas, delicadamente esculpidas com toda sorte de desenhos geométricos — a arte do kene, que eles acreditam ter sido ensinado às mulheres pelo espírito da ayahuasca. O pajé Tadeu Siã Txana Hui Bei levava na cabeça um cocar matizado de vermelhos, la ranjas e amarelos. No peito, carregava a imagem de um tigre.
Havia uma meia-lua marcada em relevo no chão, ao centro do espaço. Na cultura de alguns povos indígenas, é utilizada para representar a influência do fogo nos diferentes estágios da vida: origem e fim. Uma fogueira, que perduraria pelo restante da noite, foi acesa na frente do símbolo. Já de madrugada, percebi que um dos guardiões do fogo desenhava uma ave com as cinzas que se acumulavam debaixo da lenha. Provavelmente uma fênix. O último respiro do Eu, que deixaria de existir para depois surgir novamente, revestido de novos conceitos e intenções.
“Se sentir que vai morrer”, disse um dos organizadores, Carlos Caruso, que explicava o funcionamento do ritual, “deixa morrer!”. De fato, o contexto e o ambiente davam à cerimônia uma conotação de rito de passagem. Passei a acreditar fielmente que jamais sairia dali como entrei. Estava preparado. As três medicinas foram apresentadas, uma a uma, acompanhadas de curtas instruções de como utilizá-las. A ayahuasca era a mais conhecida. A bebida resultante da mistura do cipó com as folhas.
Depois o rapé, um pó muito fino que nada mais é que tabaco moído e cinzas de madeira ou casca de árvore — aplicado também pelo pajé, que o assopra nas narinas de outra pessoa com um longo canudo em V. E, por último, a sananga, um colírio composto por água e pelo sumo de um arbusto natural da Amazônia. As duas últimas eram opcionais. Cada um recebeu um saquinho plástico e um rolo de papel higiênico. O vômito é um dos efeitos mais comuns da bebida. Uma limpeza indispensável: jogar para fora tudo de ruim que existe dentro do corpo e purificar a alma. Não queria ter que passar por aquilo, mas sabia que podia acontecer. Se fosse o caso, estava disposto a encarar como parte necessária do processo.
Uma moça levantou a mão. Pense você que espécie de reação teria se ouvisse a seguinte frase, ou algo muito próximo, pouco antes de tomar a primeira das duas doses: “Vai ter algum tipo de ajuda para quem passar mal? Porque eu tive convulsão na primeira vez, e o meu companheiro aqui nunca veio antes.” A resposta foi que sim, que haveria pessoas disponíveis prontas para ajudar sempre que preciso.
Não me abalei, ou pensei que não. Sabia que esse tipo de ocorrência era raro e que geralmente só acontecia com quem tinha algum problema de saúde que pudesse entrar em conflito com os efeitos da ayahuasca. Repeti para mim que era tudo psicológico. Quando pediram para que levantássemos, num ato inicial já com a direção do pajé, me apoiei sobre os joelhos e percebi que tremia.
O círculo estava quase todo tomado. Conforme mais pessoas foram chegando, mais as áreas concêntricas foram sendo ocupadas. Havia espaço apenas ao redor da fogueira e na frente do pequeno altar montado para auxiliar o pajé, em que se encontravam diversos utensílios para o serviço das medicinas e as três garrafas de refrigerante cheias, sem rótulo, que com portavam a ayahuasca.
Mirações e empatia
O trabalho começou. O primeiro a tomar a bebida foi o Carlos, seguido de algumas pessoas que rapidamente formaram uma fila. Muitos agradeciam o pajé com o haux, palavra bastante utilizada na língua hunikuin que corresponde a uma saudação. O nosso “obrigado”. Fui um dos últimos. Avisei o pajé de que era minha primeira vez e ele encheu o copinho de vidro só até a metade. Um gole bastou. Tinha cor de terra e gosto forte, um pouquinho amargo, mas achei absolutamente suportável. Não era ruim.
Voltei e tentei me acomodar, o que não era tão fácil porque o vento passava por uma fresta logo atrás da minha cabeça e eu já ameaçava uma dor de garganta que só ficaria pior por conta da fumaça. O nariz não parava de escorrer, justo na noite mais importante e menos previsível do ano. Procurei me concentrar.
Depois de servida a primeira dose, talvez por volta da meia noite, os indígenas puseram-se a cantar – o pajé Tadeu Siã, seu irmão Inu Bese, a artesã Bunke e a parteira Maspã. Conjuravam os espíritos do outro plano para guiar o caminho e a jornada de todos. Os dois homens ficavam de pé, dançando e conduzindo a cerimônia à luz do fogo. As mulheres permaneceram sentadas, acompanhando a música com vozes altas e claras que saíam sem esforço das bocas quase fechadas. Tive a sensação de estar nos primórdios do mundo, ouvindo vozes que me concederam o paradoxo de lembrar o que nunca tinha escutado. O ar esfumaçado tinha tomado conta do ambiente por completo.
Passados poucos minutos, ouvi a primeira pessoa vomitando. Fiquei confuso. Não tinha sentido o menor efeito sequer. Olhei para o Vitor, que a essa altura tinha arrumado um lugar do meu lado. Estava deitado direto no chão frio. “Alguma coisa?”, perguntei. Ele acenou que não, que estava tudo normal.
Eu deitava, sentava, abraçava os joelhos. Fechava os olhos procurando ver algo. Nada. O Vitor, meio sem paciência, foi pedir um pouco de rapé. Começou a passar mal em cinco minutos. Decidi que não usaria, principalmente pelo risco de mandar o pó para a garganta e me complicar ainda mais. Tinham dito que era bom para gripe, mas na hora fui cético. Também receava não poder distinguir os efeitos de cada medicina para relatar com mais lucidez.
Notei que algumas pessoas já tinham transposto a realidade. Uma mulher não parava de balançar os braços acima da cabeça, como numa estranha dança ou numa espécie de exorcismo. Mais tarde, começou a chorar. Não me lembro de ter ouvido um choro tão profundo, tão dolorido. Gastei o tempo refletindo comigo mesmo e tentando imaginar que sombras seriam aquelas.
De repente o pajé parou. Fazia duas horas que estavam cantando de forma ininterrupta. Anunciava a segunda dose. Fui um dos primeiros. Com medo do tédio, tomei a dose inteira e retornei. Levou menos de dez minutos. Quando fechei os olhos, reparei em elementos invasivos que ocupavam o espaço do negro anterior. Senti um princípio de opressão pelo corpo todo, como se a bebida pudesse incendiar o sangue.
Carlos tinha iniciado algumas canções de reza. Os indígenas, enfim, tinham ido descansar. Comecei a ter mirações. Imagens aparentemente aleatórias que povoam a mente sem trégua, sem descanso. A jiboia saiu da música e apareceu do meu lado. Como um guia, me conduziu para o outro lado do portal. Estava entrando num universo completamente novo. Na imensurável vastidão da consciência.
O absurdo que acabo de descrever não era mera invenção. Passei a ser confrontado por um conjunto interminável de cenas. A sensação era de estar num trem e olhar pela janela. As coisas já estavam ali, vivas e inegavelmente verdadeiras. O contrário da imaginação, que requer um esforço criador mínimo. Eu estava à deriva, sem remédio além de aceitar o controle total daquele agente desconhecido. Queria ver o que ele tinha para mostrar.
Completamente entregue, observei meu corpo evaporar aos poucos. Como se a camada superficial, de sentimentos ruins, estivesse sendo arrancada. Sentir algo assim é intraduzível. Era também uma dor física. Notei o coração descompassado e tentei controlar a respiração enquanto as imagens seguiam jorrando. Representações primitivas, passíveis de compreensão em qualquer época da história humana. Luzes, cores, formas. Não havia intervalo.
O espaço e o tempo haviam perdido importância. Não era necessário percebê-los. Não sei exatamente como nem quando, mas a partir de determinado momento passei por um processo profundo de reflexão. As imagens foram em outra direção, talvez porque eu esperasse aquilo desde o início. Com as defesas baixas, encarei algumas questões que, no fundo, já estavam pré-trabalhadas. Problemas do cotidiano, pequenas inquietações. A lição sobre empatia talvez tenha sido a mais forte.
Recordei diversas pessoas pelas quais tinha alguma inimizade e repensei as minhas relações pessoais. Entendi que cada alma viva sobre a terra tem seus obstáculos, seus demônios. Eu habitava um plano sem discórdias, onde a raiva era impossível. Havia uma conexão especial com cada ser vivo, com cada fragmento que compõe a nossa existência. A seguir vieram outras figuras, sempre com determinados ensinamentos. Mais tarde, quando tentei lembrar para anotar, não apareceram. A quantidade de experiências momentâneas atropelava a minha capacidade de memória.
Abri os olhos. Além de uma pequena intensificação das cores, nada estranho. Conseguia me movimentar e raciocinar com normalidade. Eduardo tinha levantado e estava dançando as músicas de reza com entusiasmo. Pegou um tamborzinho que tinha levado de casa e começou a batucar junto. Tive a impressão de ver os átomos em ebulição, queimando de baixo para cima e enchendo o ambiente de energia. Eu ria, olhava para os outros e me sentia absolutamente feliz. Estar de olhos abertos funcionava como um escape. A única certeza de que não tinha enlouquecido. Sabia que deslizaria para o outro lado da porta no exato momento em que os fechasse novamente. E era justamente o acontecia.
Subconsciente
Bastava perder contato com as dimensões físicas da realidade para ir de encontro ao implacável turbilhão de ideias e sentimentos. Segui a jornada. Cheguei ao que considerei como meu subconsciente. Fui, inclusive, recebido por mim mesmo. Como quem marca um encontro no café da esquina, tínhamos tempo para conversar sobre o que fosse. Ele basicamente explicou o funcionamento das coisas ali no outro lado. Pela primeira vez na viagem, me senti livre. Conseguia direcionar meus pensamentos. Depois, saí dali e retornei ao plano material, onde o meu corpo estava. Tinha noção de que pertencia a dois mundos distintos, e podia alternar entre eles quando quisesse.
“Demorou dessa vez, hein?”, brincou o meu Eu lá de baixo em uma das vezes que demorei a voltar. Percebi que aquele é o lugar inevitável para discutir, refletir, desnudar o espírito por completo. Um teatro dos espelhos. Entra um lobo da estepe sem nenhum autoconhecimento, sai um imortal. Processo necessário na vida de qualquer pessoa facilitado pela ferramenta da ayahuasca.
Parei um pouco para pensar naquela loucura sensata. Tinha descoberto em mim uma parte sufocada há 23 anos; uma realidade que jamais pensei que existisse. Olhei ao redor. Dezenas de pessoas passavam pelo mesmo, concentradas na intenção de tirar a máscara e trabalhar aquilo que realmente importa. Sem compromissos, sem pressa, sem obrigações. Cada um numa viagem interior singular e absolutamente transformadora. Partilhávamos um conhecimento extraordinário que em hipótese alguma poderia se perder.
Encarei o ritual como um reduto de protetores da tradição nativa da América, até porque não estávamos só entre brasileiros. Tinha um grupo de mexicanos e um rapaz da Finlândia que, num português quase ininteligível, haveria de chamar o Brasil de “coração do mundo”. É uma tragédia que por aqui ainda não saibam. Fascinado, fechei os olhos novamente em busca da próxima parada.
Dessa vez, vi uma abundância de formas geométricas padronizadas e fantasticamente coloridas. A inspiração para a arte kene do povo Huni Kuin vinha exatamente dali. Huxley, quando tomou a mescalina do cacto peiote, viu a mesma coisa. Ele chamou as luzes de antípodas, seres que habitam a parte inexplorada da mente. Tinha razão. Era como se eu pudesse acessar lembranças que não são minhas. Como se pudesse compreender uma linguagem universal e atemporal.
Brinquei com a mágica durante algum tempo. Quando me cansava, abria os olhos. Filosofei comigo mesmo sobre a natureza, sobre o universo. Amadureci a ideia de que somos todos parte da mesma existência. Resultados da transformação da matéria. Éramos folha, gota d’água, grão de terra. Pensamentos assim me ocuparam pela madrugada. Encarei a ayahuasca como uma chave para o infinito — de mim mesmo e de um inconsciente coletivo repleto de imagens arquetípicas. Um plano compartilhado. Podia ir a qualquer lugar com enorme sensação de realidade. Talvez o mais próximo possível do Aleph de Borges: um único ponto que concentra todos os outros. Sobrecarregado de tanta informação, resolvi acompanhar a cerimônia. Sequer tinha vomitado.
Carlos continuava guiando o ritual com as rezas de violão, depois apenas com canto. Algumas pessoas dançavam, outras seguiam deitadas em êxtase. Vez ou outra aparecia alguém pedindo ao pajé um sopro de rapé. Em certo momento vi os quatro indígenas sentados, as cabeças levemente inclinadas, imersos dentro de si mesmos. Dei um sorriso, talvez o mais sincero que já esbocei. Os minutos foram passando e percebi que ia perdendo contato com o outro plano. As imagens já não vinham com tanta pertinência. Até que fechei os olhos e vi apenas a escuridão inconfundível da noite.
Chamei o Vitor e fomos tomar um ar lá fora. Tinha passado horas inalando fumaça sem a menor preocupação. Cinco horas da manhã e eu, já sóbrio, queria compartilhar a experiência. Mal acreditei quando contou que não tinha sentido nada. “Acho que você devia ter tomado mais”, falei, alegando que algumas pessoas são mais resistentes à bebida. Em outras, mesmo com pouco, o efeito é ainda mais forte. No meu caso, penso que foi na medida certa. De bom tamanho para a primeira vez.
Seguimos lá fora até as primeiras luzes da manhã. Resolvemos experimentar a medicina da sananga. Dizia-se que limpava os olhos e aumentava a capacidade de concentração. O único problema era que ardia. Muito. Vi gente sofrendo ajoelhada, mas ainda assim não quis deixar a experiência passar. Sabe-se lá quando ia aparecer oportunidade daquelas.
Chamei o pajé para fazer a aplicação. Quando deixei a gota escorrer pelo canto dos cílios, me arrependi. Fui incapaz de continuar sentado e levei as mãos à cabeça. Por dez minutos lutei de olhos fechados. Lágrimas irrompiam aos borbotões enquanto tentava abrir uma pequena fresta. Não sabia que o corpo era capaz de produzir tantas. Jurei que jamais voltaria a colocar aquilo nos olhos, mas talvez estivesse dominado pelo impulso do momento. Pensando agora, acho que deveria arriscar e pingar de novo dia desses.
Aproveitei para ir ao banheiro enxugar o rosto e dar uma volta pela chácara. Refleti brevemente sobre o que tinha acabado de acontecer, tentando entender o sentido daquilo por um lado mais racional, e fui me aproximando de novo do círculo. Vitor esperava do lado de fora, sóbrio. Eduardo, que tinha tomado três doses da bebida, estava lá dentro dormindo. Muita gente já tinha despertado. Nenhum sinal de sujeira.
À medida que o ritual se encaminhava para o final, voltei ao meu lugar e esperei. A combinação do azul claro do crepúsculo com o laranja das brasas parecia divina. Fazia muito frio. Recebemos um caloroso bom dia do pajé e levantamos para uma breve despedida. Numa linda demonstração de humildade, ele e o irmão agradeceram. Sentiam-se imensamente felizes pela presença de todos. Mesmo numa época tão nebulosa, estavam ali, de pé, doando um tempo precioso para iluminar o mundo com aquela cultura fantástica. A três mil quilômetros de casa. Nós é que temos o dever de agradecer pela coragem. Haux haux.
Enquanto íamos embora, logo depois das oito da manhã, tentei estabelecer um roteiro de como escreveria este relato. Precisava descrever a experiência da maneira mais objetiva possível, mas tinha, e continuo tendo, perfeita noção da impossibilidade da tarefa. Palavra nenhuma fará justiça, tamanha é a subjetividade. A ayahuasca é o início de um longo caminho de autoconhecimento, do olhar para dentro. O que cada um vê ou sente é invariavelmente diferente, assim como os motivos e intenções que levam à procura da medicina — mas a mudança, às vezes radical, é certa. Portanto, espero que meu livro possa acender uma faísca de curiosidade. Que suas páginas sirvam, ao menos, como uma porta.
*Introdução ao livro-reportagem ‘Os caminhos do cipó: perspectivas sobre o consumo contemporâneo de ayahuasca’ publicado aqui no Plural.
Olá Gabriel como vai? Tem dois dias tive minha primeira experiência e digo com toda certeza,foi a minha melhor escolha , é transformador, tem que sentir para entender palavras não expressam gratidão …
Oi Gabriel, que relato bonito, obrigada por compartilhar! Estou recolhendo relatos do trabalho de transformacao que as plantas medicinais nos oferecem e me esbarrei com seu blog. Posso repostar seu relato com os devidos creditos? obrigada
Tive minha primeira experiência fazem 10 dias e posso afirmar com absoluta certeza que foi um divisor de águas para minha vida. Irei com frequência voltar à aldeia, sempre que houver outra consagração. HAUX!
Estou há exatos 3 dias para experimentar a medicina Gabriel, tem alguma dica para aproveitar mais ainda a experiência?
Obrigado, tudo de bom sempre.
Tive o prazer de experimentar e posso dizer q foi a melhor coisa que fiz na vida !
Lindo relato!
Adorei ler o seu livro, estou tentando entender esse caminho, se você puder me ajudar e indicar um pajé sério é um lugar sério , gostaria de participar dessa experiência obrigado!