Banho esporádico e alimentos no chão: MP denuncia Casa para pessoas com deficiência em Curitiba

Promotoria constatou condições inadequadas de atendimento a deficientes de outras cidades enviados à Curitiba para supostamente receber atendimento especializado

Doze pessoas com deficiência vivem em um sobrado na rua Desembargador Westphalen, 2649, em Curitiba. Este é o endereço delas desde fevereiro, quando a Casa de Apoio Santana mudou de lugar, após o Ministério Público do Paraná (MPPR) pedir a interdição. A Casa é ré num processo movido pela Promotoria de Justiça dos Direitos da Pessoa com Deficiência por más condições no atendimento aos internados. A investigação dos promotores apontou inúmeros problemas de higiene, atendimento e gestão no local, que permanece aberto e atendendo com autorização da prefeitura de Curitiba.

Antes da mudança para a Westphalen, a Casa ficava na Cidade Industrial de Curitiba (CIC), na rua Professor Teobaldo Leonardo Kletemberg, 249. Neste endereço, a primeira fiscalização da Promotoria de Justiça dos Direitos da Pessoa com Deficiência em 11 de novembro de 2022, encontrou a geladeira quase vazia, medicamentos mal acondicionados, pontos de bolor nas paredes, forte cheiro de urina.

A situação, aponta o MP, não é restrita a Casa de Apoio Santana, uma vez que o atendimento não é regulamentado e as empresas do setor atuam num vácuo regulamentatório. À Justiça, a promotora Luciana Linero aponta que o atendimento a pessoas com deficiência nessas casas “não é das melhores uma vez que esses locais não podem ser enquadrados legalmente como residências terapêuticas ou inclusivas, tampouco locais de acolhimento socioassistenciais, mas possuem alvará de funcionamento fornecido pelo Município de Curitiba para atuarem com base no Cadastro Nacional de Empresas n°. 8720-4/99, com o seguinte teor: “Atividades de assistência psicossocial e à saúde a portadores de distúrbios psíquicos, deficiência mental e dependência química e grupos similares não especificadas anteriormente””.

“Deparamo-nos com inúmeras empresas privadas com fins lucrativos, que atendem os acolhidos em imóveis residenciais comuns, localizadas sobretudo no Bairro Boqueirão desta Capital, além de instituições municipais e organizações da sociedade civil, sendo constatado na grande maioria – senão em todas – situações igualmente dramáticas”, relata. As casas atendem pessoas de outros municípios enviadas para cá para “supostamente para inseri-las em residências inclusivas ou terapêuticas”.

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Urina e bolor

A Casa de Apoio Santana funcionava em um sobrado, que tinha problemas de acessibilidade e limpeza, conforme relatório do MPPR ao qual o Plural teve acesso. “Foi notado forte odor na casa, principalmente de urina. Ademais, havia cômodos embolorados e sujos”, diz um trecho do documento.

À época havia mais de 30 residentes na Casa. Segundo o relatório da Promotoria, muitos deles pediam para voltar para as famílias. Outros reclamaram da alimentação. “Os moradores Maria* e José* aduziram que: carne, praticamente não tem, só osso; não tem suco, refri, sentem muita fome pela manhã porque comem pouco, é regulado, jantam todo dia sopa ou arroz com macarrão”, prossegue o texto.

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Os residentes tinham seus pertences guardados em um mesmo cômodo, cujo acesso só era possível se um funcionário abrisse a porta com a chave. O MPPR também apontou irregularidades no armazenamento de alimentos, que estavam guardados no chão.

Alimentos guardados em caixas no chão | Foto: MPPR

Manter mais de 30 pessoas em uma casa exige muito esforço para garantir a higiene. Imagens feitas durante a vistoria mostram roupas de cama secando em um sótão, com pouca ventilação e sem luz do sol.

Fora os problemas estruturais, segundo o MPPR, uma das cuidadoras ouvidas no dia da fiscalização afirmou que um morador faleceu após se engasgar enquanto comia uma laranja. Além disso, o processo, que tem mais de 950 páginas, cita também a existência de um pilar revestido no último andar do antigo endereço.

“[…] havia diversos entulhos, muito pó, roupas dos moradores estendidas, roupas jogadas em cima dos entulhos, colchões, potes de armazenamento de remédios, camas, armários, madeiras, lixos, e, o que mais chamou a atenção, havia um pilar de madeira, revestido de acolchoado, o que remetia a um pelourinho. Quando questionado à senhora Regielma [proprietária] do que se tratava, esta ficou quieta, inicialmente. Após, novamente questionada, demonstrou surpresa e proferiu que não sabia do que se tratava e que nunca tinha reparado neste pila”.

À época a Casa de Apoio Santana matinha contratos com as prefeituras de Araucária e de São Francisco do Sul, em Santa Catarina.

A portaria que instaurou processo administrativo foi assinada pela promotora Luciana Linero, com data de 19 de junho de 2023.

Em novembro de 2023, ou seja, depois da primeira fiscalização do MPPR encontrou medicamentos vencidos. “Existiam medicamentos vencidos desde os meses de junho, julho e setembro/2023; medicamentos fora do blister, soltos no pote que não tinha nomeação. No armário de medicamentos ficavam também os contratos e documentos dos moradores, receitas médicas, potes com ferramentas (…). Não há separação dos lixos medicamentosos, sendo descartados no lixo comum.

Violação de direitos

A ação civil pública do MPPR fala em “violações gravíssimas de direitos” praticadas contra os residentes da Casa de Apoio Santana.

“Houve, também, análise dos livros de ocorrências (…) referentes aos anos de 2021-2023, através do qual foi verificado cenário de angústia, conturbações (…) sendo percebido do cotidiano dos moradores, em suma, que se trata de um cenário que possui rotina idêntica e resumida em banho eventual, que se inicia, na maioria das vezes, próximo às 5h da manhã, com intercalações de ministração de medicamentos, alimentação, cochilo e cigarro”, aponta o MPPR.

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Além disso, conforme a Promotoria, embora não se enquadre em modalidades de acolhimento (que permite abrigamento de adultos sem consentimento), não é permitido que os residentes saiam mesmo quando é o desejo deles.

A documentação fornecida pela própria empresa ao MPPR revela que residentes tiveram surtos e que foram contidos. No jargão, conter uma pessoa significa limitar seus movimentos.

Em outras situações residentes agrediram colegas que ficaram machucados e também a queda de um dos moradores no banheiro. Conforme a Promotoria, as pessoas eram encaminhadas para atendimento médico apenas em “casos extremos”.

Documentação

Apesar da situação encontrada pelo MPPR, o local funciona com autorização da prefeitura de Curitiba, que forneceu o alvará juntado nos autos da ação civil pública que tramita na Justiça.

Após a fiscalização da promotoria, a Vigilância Sanitária de Curitiba realizou inspeção no endereço do CIC e afirmou que as documentações básicas estavam vigentes, que não havia problemas na documentação dos residentes e que as estruturas físicas estavam em conformidade.  

A promotora Luciana Linero, responsável pela ação civil pública, falou ao Plural por e-mail. De acordo ela, a Promotoria realiza fiscalizações em locais que acolhem pessoas com deficiência desde 2022 e que fez duas visitas na Casa de Apoio Santana.

“Infelizmente, as condições do local, nas duas visitas realizadas, estavam muito ruins, tanto em termos de alimentação, quanto de higiene e em relação aos cuidados das pessoas que estavam acolhidas ali. Além disso, o local trata-se de uma empresa privada, com fins lucrativos, e realiza contratos com familiares de pessoas com deficiência e pessoas com transtornos mentais. Também não cumpre as normativas do Sistema Único de Assistência Social e da Lei Brasileira de Inclusão para acolher pessoas com deficiência, que não devem estar em mesmo local de pessoas com transtornos mentais, e somente podem ser acolhidas se não tiverem familiares ou se estes os colocarem em situação de risco”, explicou.

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À Justiça a Promotoria pediu a interdição do local, o que ainda está em andamento no Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). “[A] Promotoria propôs ação de interdição e por tal razão entendo que a situação encontra-se em avaliação pelo Judiciário. Pedimos a retirada das pessoas dali ou pelo menos das pessoas com deficiência, mas não obtivemos êxito. Soubemos que a empresa trocou de local, mas, mesmo assim entendemos que não poderiam acolher pessoas com deficiência sem cumprir minimamente as condições estabelecidas nas legislações citadas”, criticou Linero.

O Plural entrou em contato, por e-mail, com a Procuradoria-Geral do Município, por meio do endereço eletrônico que consta no site oficial para saber sobre a ação civil pública envolvendo a Casa de Apoio Santana, mas não obteve retorno até o fechamento deste texto.

Novo endereço

Nesta segunda-feira (29) fomos ao novo endereço da Casa de Apoio Santana, no Rebouças. A proprietária Regielma Sebastiana Fagundes nos recebeu juntamente com a assistente social Luciani Barboza e a nutricionista Rafaela Azevedo Carvalho dos Santos, que foram contratadas em fevereiro deste ano para “resolver a situação”.

A mudança de endereço, conforme Fagundes, ocorreu porque o antigo imóvel, que era alugado, foi vendido e não tem a ver com a ação movida pelo MPPR.

Atualmente residem dez homens e duas mulheres na Casa de Apoio Santana, todos clientes particulares, já que os contratos com as prefeituras de Araucária (que previa repasse de R$ 214 mil por 12 meses) e com a prefeitura de São Francisco do Sul (SC) (com valor de R$ 270 mil por 12 meses) não estão mais válidos.

A redução de residentes para apenas doze, conforme a administração, faz com que a empresa não tenha recursos suficientes para fazer todas as adequações apontadas necessárias no novo endereço, que logo na entrada ostenta uma escadaria que não é acessível para quem tem mobilidade reduzida.

“Por isso que a gente está assim nesse impasse: o que fazer? Porque para podermos reordenar o serviço precisa de dinheiro e para ter o dinheiro precisa de pacientes”, explicou ao Plural a assistente social Luciani Barboza.

A Casa de Apoio Santana existe desde 2018. Ela foi comprada pela atual proprietária em 2020, junto com o ex-marido, em sociedade. A empresa funcionava no CIC, mas a antiga dona vendeu o imóvel.

Regielma Sebastiana Fagundes, a atual proprietária, fala que as questões orçamentárias atrapalham a resolução dos problemas apontados pelo MPPR. Depois da primeira fiscalização, a empresa estava disposta a realizar mudanças para melhorar a acessibilidade, de acordo com ela. “Conversamos com ela [a proprietária do imóvel] sobre a renovação do contrato porque a gente teria que arrumar a casa. Ela não deixou a gente mexer em nada e pediu a casa”, argumentou.

Fagundes se divorciou neste meio tempo e falou que precisou pagar a parte do ex-marido no negócio e mudar de endereço por causa da venda do imóvel. Por essa razão defende que não conseguiu garantir a acessibilidade no endereço do Rebouças.

A assistente social Luciani Barboza critica as exigências legais para funcionamento da empresa. “Com todas essas burocracias, essas dificuldades, tudo isso que está acontecendo, acaba afetando os residentes. São funcionários que tivemos que desligar, e eles sentem falta. Tem muito acontecendo”, diz.

A visita

A atual sede da Casa de Apoio Santana, embora ofereça serviços para pessoas com deficiência, não oferece acessibilidade para cadeirantes, por exemplo. Há dois lances de escada já na entrada, no acesso ao refeitório e ao pátio. Sobre isso as funcionárias disseram que no momento não tem nenhum residente cadeirante e que “não estão aceitando”.

A empresa está adequando um novo banheiro e, diferente da sede anterior, agora há janelas nos quartos.

A visita do Plural foi combinada com antecedência, diferente das vistorias feitas pelos órgãos públicos.

Na segunda-feira chuvosa as duas mulheres dormiam em um quarto com cortinas cor-de-rosa. Quatro homens assistiam às Olimpíadas na TV. Outro olhava no espelho do banheiro e falava consigo mesmo. Os demais dormiam.

Duas funcionárias estavam na cozinha. Outras três colaboradoras nos acompanharam mostrando a casa, que tem sala de descanso para com um sofá e armários onde ficam guardados os medicamentos dos residentes.

Casas de Repouso

Instituições de Longa Permanência para Idosos (Ilpis) são locais de caráter residencial para pessoas com mais de 60 anos e que devem garantir liberdade, dignidade e cidadania.

Já pessoas com deficiência são atendidas em Residências Inclusivas, que são locais adaptados às necessidades de seus moradores e contam com uma equipe técnica especializada. Tanto as Ilpis quanto as Residências Inclusivas podem ser públicas, privadas ou privadas conveniadas com o Poder Público.

A Casa de Apoio Santana não tem mais contratos públicos. Portanto, parentes dos residentes pagam a estadia. A orientação nesses casos é que o contratante cheque detalhadamente a documentação.

Ademais, segundo a advogada Renata Farah, especialista em Direito Médico e à Saúde, é importante visitar os locais antes de fechar o contrato. “Tem que olhar a questão estrutural, chegar quantos cuidadores estão disponíveis, se possível falar com os moradores e ver a documentação, porque quem vai ficar lá é seu bem mais precioso, seu ente querido que precisa de atendimento”.

Por lei é preciso checar o que está sendo oferecido no contrato: terapias ocupacionais, recreação, tipo de alimentação e quaisquer outras atividades que possam interessar ao futuro residente.

Em casos de acidentes que machuquem os moradores é necessário averiguar se houve negligência. “Acidentes acontecem, não é preciso ter essa visão punitivista. Podem acontecer acidentes nestes locais, como podem acontecer em casa”, pondera a especialista.

Denúncias

Qualquer cidadão que saiba de desrespeito aos direitos de pessoas com deficiência pode acionar os órgãos públicos. Além da Promotoria, é possível acionar o Governo Federal por meio do 181 ou no Disque 100.

De acordo com dados do Ministério dos Direitos Humanos houve 359 denúncias enviadas à pasta neste ano de casos que ocorreram em Curitiba. Ao todo, são mais de 2,1 mil violações aos direitos das pessoas com deficiência.  

*nomes fictícios

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