Famílias despejadas da Tiradentes II estão abrigadas por freiras em ginásio

Moradores foram expulsos pela polícia e tiveram seus pertences jogados em caçambas sujas de lixo; agora, famílias esperam aluguel social tendo ajuda apenas de freiras e movimentos sociais

A filha de Geovanna, que ainda mal sabe falar, pede para a mãe: “Quero ir pra casa”. Sem ter outra resposta, Geovanna explica para suas três crianças que, pelo menos por enquanto, aquela é a casa deles. Mas, claro, por menores que sejam, eles não se convencem. O espaço com os colchões debaixo de uma trave de futebol não se parece com uma casa. Não é uma casa. E no entanto, é ali que eles estão.

Desde terça-feira, quando houve o despejo da Tiradentes II, Curitiba ganhou 67 famílias de sem-teto. A maioria vive hoje provisoriamente na cancha do Centro de Integração Social Divina Misericórdia, uma instituição comandada pelas freiras do Sagrado Coração de Jesus no bairro São Miguel. Outras conseguiram casas emprestadas na região. Mas as casas que de fato eram deles não existem mais.

A polícia cercou a Tiradentes II pouco antes de seis da manhã de terça. Fazia muito frio e as famílias, obviamente, estavam dormindo. Ninguém esperava um despejo àquela altura, porque havia uma negociação adiantada com a Cohab para que todos saíssem – em troca, receberiam um aluguel social para poderem reconstruir suas vidas com alguma calma.

A Essencis, multinacional dona do terreno onde construiu um aterro que recebe repasses milionários da Prefeitura de Curitiba sem jamais ter passado por uma licitação, não quis esperar. Conseguiu da juíza Franciele Cit, da 17ª Vara Cível de Curitiba, uma ordem de despejo imediato. Os moradores não entenderam nada. Mas souberam o tamanho do problema quando viram a quantidade de PMs que o governo deslocou para tirar as famílias dali.

Tudo que restou da Tiradentes II foi levado em caçambas sujas e hoje seca em quadra à espera de novo endereço. Foto: Tami Taketani/Plural

Casas foram demolidas sem que as pessoas tivessem sequer tempo de tirar seus pertences. Há relatos de que uma casa começou a ser destruída enquanto uma criança ainda estava lá dentro. A meia hora que a polícia deu para que todos saíssem sem ser presos deu para quase nada: a maioria tentou salvar os bens de maior valor, o que normalmente quer dizer o fogão, o botijão de gás e a cama.

A situação ficou pior quando os moradores descobriram que os dois caminhões enviados pela Essencis não eram para fazer a mudança. “Esses caminhões são pra puxar a madeira das casas”, teria dito o funcionário. Geovanna gritou, brigou, quase foi presa. Ela, como outros moradores, exigiram que os dois caminhões caçamba ajudassem, pelo menos, a transportar seus objetos que eram retirados às pressas das casas – em geral, casas de um cômodo, de madeira, sem nem mesmo banheiro.

Colchões espalhados por ginásio: à noite, frio que entra pelas frestas é cortante. Foto: Tami Taketani/Plural

As caçambas tinham sido usadas para transportar terra, estavam sujas, com barro. Os moradores embalaram seus pertences em sacolas, sacos de lixo. “Mas eles não tomavam nenhum cuidado. Jogavam tudo na caçamba como se fosse lixo”, diz Miguel, um dos líderes da ocupação. Muitas coisas foram estilhaçadas. O resto, molhado e sujo, hoje seca num pátio à espera de um novo endereço.

Em pouco tempo, não restava mais nada no local. As famílias foram sendo empurradas para fora, as casas foram sendo derrubadas. Restou apenas o espaço para que a Essencis amplie seu aterro e continue recebendo lixo em troca de dinheiro.

Abrigo improvisado

Irmã Anette estava isolada do mundo. Uma vez por ano, as irmãs do Sagrado Coração de Jesus precisam se afastar de tudo e passar uma semana em um retiro espiritual. Lá, em tese, não podem falar com ninguém do mundo exterior. Deve ter sido um susto quando a coordenadora do retiro disse a ela que, excepcionalmente, precisava lhe repassar uma mensagem.

“Eu precisava receber as famílias aqui, mas sem uma autorização da Irmã Anette não tinha como assumir essa responsabilidade”, diz Irmã Emily. As quatro freiras que coordenam o Centro de Integração Social Divina Misericórdia sempre se mantiveram próximas das famílias necessitadas da Tiradentes. Na manhã do despejo, logo souberam do problema.

Doações: grupo de motoqueiros entregou água e roupas para famílias despejadas. Foto: Tami Taketani/Plural

Irmã Emily conta que primeiro pediram a elas que recebessem as crianças durante o despejo. No entanto, logo ficou claro que nenhuma autoridade, nem Prefeitura, nem FAS, nem Governo do Estado, ia dar às famílias um lugar onde dormir. Como cristãs, elas decidiram que não podiam seguir esse exemplo.

No Centro, as irmãs recebem famílias em situação de vulnerabilidade, mas não têm espaço para 67 famílias. O único lugar que sobrava era o ginásio. Com a autorização de Irmã Anette, os colchões começaram a ser colocados no chão. Logo algumas famílias conseguiram barracas emprestadas. Todos chegavam ensopados pela chuva, tremendo de frio – de idosos a bebês de colo.

Os chuveiros do vestiário, que as crianças usam depois de jogar futebol, passaram a ser emprestados para as famílias. As freiras conseguiram inventar uma sopa e, no dia seguinte, montaram uma cozinha comunitária para os sem-teto.

Solidariedade

Quem mais ajuda os sem-teto em seu exílio não é nenhum órgão estatal. Quem seguiu com as famílias para o Centro da Divina Misericórdia foram pessoas de outras ocupações e gente dos movimentos sociais.

A cozinha comunitária passou a ser pilotada pelo casal Claudemir e Rosa, que saiu da Vila União, onde mora, para ajudar os irmãos da Tiradentes. Tudo na base do voluntariado. “Eu recebo um benefício do governo e a gente vai vivendo com o que tem. Agora a hora é de ajudar o pessoal aqui”, diz Claudemir, mais conhecido como Cláudio.

A comida veio em grande parte do MST, que tem produção de alimentos no estado todo e doa sempre que necessário. No almoço da sexta, o cardápio tinha frango, polenta, arroz, feijão. Para o sábado, está programada uma feijoada. No entanto, Rosa vai comandar sozinha o time de voluntários. Enquanto a reportagem do Plural estava por lá, Cláudio foi espantar um cachorro, escorregou na grama e aparentemente quebrou o braço.

Claudemir e Rosa saíram da Vila União para cozinhar no abrigo improvisado onde estão os despejados. Foto: Tami Taketani/Plural

Do MST também veio Joabe, que se transformou em um dos líderes do acampamento improvisado. Recebe doações, organiza voluntários, ajuda em tudo que for preciso. “O Joabe é turista, nem tem casa. Ele vai aonde precisam dele”, diz uma das moradoras no ginásio.

O Movimento de Luta por Moradia (MPM) é o mais presente. Foram os integrantes do movimento que auxiliaram o povo da Tiradentes desde o primeiro dia, e são eles que estão lá ao lado do pessoal no momento da derrocada.

Nesta sexta, apareceram por lá também professores e funcionários do Colégio Estadual Eurides Brandão, que recebe crianças da Tiradentes II e de outras comunidades carentes da região do CIC. Everson Luiz Eduardo, professor de História, tinha comandado uma operação para reunir doações para o pessoal. “Tem alunos meus aqui. A gente está de férias, mas tem que ajudar. Tem professor que chegou a emprestar casa para as famílias despejadas”, conta ele. Quem ajudou Everson foi um motoclube. Os insanos apareceram por lá com doações de roupas e água.

A Prefeitura só apareceu por meio de uma visita da Cohab, que prometeu os aluguéis sociais para breve. No fim desta sexta, surgiu a notícia de que os 12 primeiros benefícios estavam liberados. Houve festa entre os moradores, que podem agora começar a procurar as primeiras casinhas. Mas ainda faltam 55, e ninguém sabe quando tudo estará resolvido.

Despejados

Apesar do frio. Apesar do vento cortante que entra pelas frestas do ginásio. Apesar da falta absoluta de privacidade. Dos colchões estendidos no chão e da falta de teto. Apesar dos banheiros coletivos e da insegurança de não terem um endereço. Apesar de tudo isso, as famílias dizem que estão muito melhor hoje do que no dia do despejo. A frase que a reportagem mais ouviu no ginásio foi: “O pior já passou”.

O pior, claro, foi o momento do cerco policial, o medo da prisão, o sentimento da perda de tudo que tinham. Mesmo assim, é chocante ver que aquela situação precária possa ser melhor do que aquilo que as famílias tinham.

Debaixo da trave, Geovanna espera pela nova casa junto com três filhos. Foto: Tami Taketani/Plural

“As casas eram muito perto do lixão da Essencis. A gente convivia com muito rato”, diz Silvana, mãe de três crianças, entre elas Samuel, um bebê de colo que dorme com ela e as duas irmãs dentro de uma barraca pequena. “Dormindo os quatro ajuda a ficar mais quentinho”, diz ela. Ajudante de cozinha, ela perdeu o emprego e não tinha como pagar o aluguel – foi assim que parou na Tiradentes.

Patrícia e o marido, também com três filhos, vieram do Ceará em busca de uma vida melhor em Curitiba. Estavam começando a vida de novo na Tiradentes quando chegou a polícia e fez a família perder o pouco que tinha.

Geovanna diz que já está acostumada a não receber do Estado aquilo a que tem direito. Há cinco anos espera por uma cirurgia cardíaca. A pandemia, primeiro, impediu a operação. Depois vieram outros obstáculos, e nunca o coração recebeu o reparo necessário. Agora, ela espera também que seu direito à habitação seja assegurado.

Silvana, com o bebê, dorme com mais dois filhos na barraca para ajudar a diminuir o frio. Foto: Tami Taketani/Plural

Para a família Hernandez, esse não foi o primeiro despejo. Sebastian e Miriam seguiram os passos da filha Mirela, que já havia saído da Venezuela rumo ao Brasil. Entraram no país por Pacaraima e vieram para o Sul. Moraram no Sítio Cercado, mas sem dinheiro acabaram se mudando para a ocupação Povo sem Medo, de onde foram retirados no ano passado por ordem judicial.

No despejo da Tiradentes, com o cerco policial, a família perdeu até o cachorro. Não sabem mais onde ele foi parar. Agora, o grupo de venezuelanos, que inclui também mais parentes, incluindo uma garota de 15 anos grávida, espera no ginásio uma nova casa. Mesmo assim, dizem estar felizes com a decisão de virem para o Brasil. Aqui, pelo menos, Sebastian conseguiu uma cirurgia para os olhos.

Comunidade

No abrigo, todos se ajudam. “Às vezes tem uma resenha”, explica Miguel, que junto com Stephanie e Gaúcho é líder da turma da Tiradentes. “Mas a gente já tinha vários acordos que continuam sendo cumpridos. Por exemplo, a partir de 21h, nada de barulho”, conta ele.

Na Tiradentes, havia uma única exceção para a Lei do Silêncio. Era o sábado, quando os moradores se davam o luxo de ficarem acordados até mais tarde conversando e ouvindo música, numa espécie de “baladinha”, explica Miguel. “A gente fazia um churrasquinho e se divertia. Tinha até quem tomasse seu gole. Mas em três anos, não demos um motivo para polícia baixar lá”, diz.

“Meu barraco minha vida”: família despejada brinca com a situação no ginásio. Foto: Tami Taketani/Plural

Mesmo assim, ao fim dos três anos, a polícia baixou. Agora não há mais baladinha, não há mais casas, não há mais Tiradentes II. O que há são as 67 famílias à espera de ter onde morar.

“Agora o poder público tem que resolver isso”, diz Irmã Emily. “A gente está aqui entre a cruz e a espada. Precisamos ajudar essas famílias, não seria certo não fazer isso. Mas precisamos atender as crianças que contam com a gente também”, diz ela. O recado das freiras para a Cohab foi: ajam rápido. Não há como manter as famílias naquelas condições por muito tempo. “Não é nem digno”, diz a freira.

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima