Na rota de entrega: o cotidiano de um entregador de aplicativo em Curitiba

‘Ciclo-reportagem’ registra a jornada de trabalho nas ruas

Bicicletas e ruas combinam. Essa conexão faz parte de nossas vidas desde que aprendemos a pilotar. Tudo é esquecido, exceto o ato de pedalar. Aproveitando essas deixas, há quem descubra uma maneira de obter sustento pedalando com uma mochila nas costas. Marcelo Fukuoka é um desses. Em Curitiba, vai do Sítio Cercado ao Centro cinco vezes por semana. Cadastrado na Uber, transporta os mais variados pedidos durante oito horas. Em média, percorre 80 quilômetros diários. Em um mês, recebe cerca de três mil reais. A grana é boa, mas a lida é pesada e perigosa.

Minha missão parecia simples: acompanhar o dia de trabalho pedalando junto enquanto faço fotos e perguntas. Encontrei Marcelo num grupo de pedal coletivo da cidade e marcamos o ponto de partida no Terminal do Sítio Cercado numa sexta-feira, às 12h30. O trabalho terminaria às 20h. É inverno, mas a temperatura da tarde ultrapassava os 26 graus com zero probabilidade de chuva. 

Foto: Eric Rodrigues

Logo que Marcelo sobe na bicicleta, a primeira notificação apita: retirada e entrega era no entorno do terminal. Ele sai disparado na frente, eu vou atrás seguindo os seus rastros e me esforçando para não perdê-lo de vista. Deu tudo certo. Chegamos no local, ele retirou a encomenda — uma marmita —, colocou-a na mochila e pedalou quatro quadras até o destino. O primeiro pedido foi entregue. Apesar dos pesares, achei que o resto da tarde seria tranquila. Ledo engano.

Partimos para o Terminal Pinheirinho. O plano era pegar umas entregas no caminho do Centro e permanecer na região até o fim do dia. Com o ritmo mais tranquilo, pude fazer algumas perguntas sobre a vida. Marcelo tem 20 anos, começou a pedalar em 2020 e se tornou entregador em abril deste ano. Ele não usa a mochila comum dos entregadores. Optou pelo Uber por conta das dinâmicas, valores pagos, e possibilidade de entrega de mercadorias menores. Já fez iFood e outros aplicativos, mas não viu vantagens. 

Foto: Eric Rodrigues

Antes dessa função, Marcelo foi atendente de call center, trabalhou em uma oficina de bicicletas e começou a fazer algumas entregas pela empresa. Gosta do mundo do ciclismo, participa dos pedais coletivos, como o “Pedal de Quarta” — um dos mais movimentados da cidade. Além disso, é Líbero do “Corvos do Vôlei — equipe amadora de voleibol de Curitiba —, e socorrista. Iniciou a graduação de Educação Física, mas trancou.

Passamos pelo Terminal do Portão, Praça do Japão e, por fim, chegamos à região central às 14 horas. O celular apita sem parar, as corridas são boas. Agora começa a parte tensa da “ciclo-reportagem”. Atravessando motos, carros e ônibus, Marcelo é mais rápido que o tempo. Sua intensidade explica a renda que consegue mensalmente. Para ter uma noção da agilidade, em menos de 15 minutos ele completa rotas que vão do Terminal Guadalupe ao Shopping Pátio Batel, da Praça do Japão até o Shopping Mueller. Tudo isso, alternando trechos nas vias rápidas, calçadas, contramão e canaletas. A ciclovia é inviável, ele busca atalhos para evitar o cancelamento dos pedidos.

Foto: Eric Rodrigues

Sem as garantias dos empregos CLT, Marcelo depende de si, sua bicicleta e da boa convivência com os motoristas curitibanos — reconhecidos pela impaciência no trânsito. Enquanto pedala ao meu lado, ele enumera táticas para ocupar as vias, cita ruas que evita e conta percalços cotidianos. Outro dia, por exemplo, pegou um estojo para entregar em um lugar da cidade. A curiosidade foi maior e ele conferiu o que havia dentro: drogas. Sentiu alívio ao não ser abordado pela polícia naquele dia. Outra vez, o segurança de um shopping pediu para tirar o capacete na porta de entrada principal. Ele não entendeu, mas seguiu as ordens.

Para aguentar o restante da jornada, Marcelo faz um intervalo rápido na Praça Santos Andrade. São 16h: pausa para alimentação. Coca-Cola e salgado nas mãos, bicicleta no chão e garrafa d’água abastecida no lado. O descanso abre outra brecha para o nosso diálogo. Descubro que ele traz consigo um carregador portátil do celular e um kit de reparo da bike, e que as roupas de ciclismo foram ganhas em 2021, quando começou a disputar competições municipais e estaduais. O envolvimento com os campeonatos renderam títulos, medalhas e reconhecimentos.

Foto: Eric Rodrigues

Apaixonado pelo mundo do ciclismo, concilia o que gosta de fazer com possibilidade de renda. “Gosto desse trabalho, porque juntou coisas que curto, como conhecer a cidade, conhecer gente nova, conversar com muitas pessoas e andar de bicicleta”, diz ele. E complementa: “Aproveito para desenvolver várias habilidades no ciclismo, como andar em grupo, passar em obstáculos difíceis, ter um controle maior e mais utilidade com a bike. Isso ajudou bastante no meu condicionamento físico e mental”.

Foto: Eric Rodrigues

Houve alguns acidentes antes de adotar as entregas como renda. Em uma das ocasiões, parou de pedalar por dois anos. Hoje tem confiança para ocupar a rua, mas não confia nos motoristas. Faz sentindo, afinal a relação entre automóveis e bicicletas é conflituosa em Curitiba. Mais de 2 mil acidentes foram registrados pelo Batalhão de Trânsito nos últimos quatro anos.

Fim da pausa e da conversa. Nos colocamos a postos para trabalhar. O movimento no centro se multiplica após às 16h30. Ao contrário de mim, que não tenho mais pernas, Marcelo segue num ritmo frenético em sua bicicleta. Tento acompanhá-lo, mas ele some no horizonte recheado de veículos e pessoas. 

Foto: Eric Rodrigues

Alcanço o Marcelo na Praça 29 de Março, a entrega é no começo da Rua Brigadeiro Franco, no final de uma subida pesada e difícil. Chegamos no prazo, mas a pessoa cancelou. Não houve tempo para lamentar e o som do chamado tocou. Ele se aprumou e saiu em velocidade para o Passeio Público. Sem energia, despedi-me e agradeci pela tarde que compartilhamos. Isso foi às 17h20. Ele retribuiu as palavras e seguiu o seu rumo por mais três horas. 

Tentei registrar as distâncias percorridas e, para isso, utilizei o Strava — aplicativo usado por esportivas. Das 12h30 às 17h20, foram 46 quilômetros, 414 metros de elevação e mais de três horas de movimento. A distância percorrida é igual ao itinerário do Terminal de Pinhais ao Terminal da Fazenda Rio Grande. A jornada total é o dobro.

Foto: Eric Rodrigues

Este texto faz parte do Periferias Plurais, que convida jovens de Curitiba e Região a falarem sobre suas vidas e suas comunidades. O projeto tem apoio do escritório de advocacia Gasam.

Sobre o/a autor/a

2 comentários em “Na rota de entrega: o cotidiano de um entregador de aplicativo em Curitiba”

    1. O encontro acontece na frente do Shopping Estação, na calçada da Probel. É nas quartas-feiras, a partir das 20h. Recomendo acompanhar a comunicação no Instagram (@fg.cwb). Eles avisam se o pedal é cancelado quando chove e tudo mais.

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