Atropelamentos matam 25 kaingangs em estradas que cortam terra indígena do Paraná

Alcoolismo é um dos problemas, segundo cacique de Reserva Indígena Rio das Cobras

Quem passa pela BR-277, em Nova Laranjeiras, no Centro-Sul do Paraná, vê dezenas de cruzes com coroas de flores cravadas na beira da rodovia. São homenagens aos que morreram atropelados no pequeno trecho de uma das principais vias do estado. O mesmo ocorre na PR-473, que também corta a Terra Indígena Rio das Cobras. Desde 2017, 25 indígenas kaingang morreram atropelados nos dois trechos. Os dados das polícias rodoviária Estadual e Federal são de casos de morte no local, antes da chegada de socorro. Outros 22 ficaram feridos (ao menos 8 em estado grave).

São 25 km de rodovias que cortam a maior Terra Indígena (TI) do Paraná, onde moram 3.100 indígenas, segundo o Censo 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A maioria das mortes aconteceu na BR-277. Foram 18 óbitos, majoritariamente de jovens (sete dos mortos tinham entre 15 e 25 anos) e do sexo masculino (12). Na PR-473 foram sete óbitos por atropelamento desde 2017.

Também não há dados sobre a condição dos feridos e óbitos posteriores, por isso os dados de mortalidade podem ser maiores. O Ministério Público Federal (MPF), com base em dados da Funai, informou que entre 2017 e 2022 foram 40 óbitos por atropelamento nos trechos. A reportagem questionou a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), mas não teve retorno.

“O alcoolismo é o principal problema e está relacionado com os atropelamentos”, lamenta o cacique kaingang da área Angelo Kavigtanh. “O indígena tem a total liberdade de pegar uma cachaça e colocar na mesa, isso atrapalha o trabalho da liderança. Nos preocupamos com esses jovens e estamos trabalhando para diminuir o índice de alcoolismo aqui dentro”, relata.

A BR-277, pavimentada na década de 1960, é o limite da Terra Indígena criada em 1902. Segundo o cacique, a bebida é vendida em estabelecimentos fora da área, no lado oposto da rodovia, e os atropelamentos, na maioria dos casos, ocorrem próximos a esses pontos de comércio.

Indígena deitado às margens da rodovia. Foto: Cléber Moletta Gomes

“Os atropelamentos são uma anomalia, não são pessoas atravessando a via, existe um problema de saúde pública relacionado ao uso de álcool, muitos indígenas ficam deambulando pela via, não é uma travessia, eles ficam caminhando ou deitam na via”, relata o policial rodoviária federal Ricardo Salgueiro, da delegacia de Cascavel.

Essa relação fica evidente ao observar o trecho mais mortal. A maioria dos acidentes aconteceu entre os quilômetros 475 e 477, acesso das moradias aos locais de venda de bebida.

Uma medida adotada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), segundo Salgueiro, foi estabelecer um canal direto de comunicação com as lideranças da comunidade. Quando as equipes visualizam indígenas alcoolizados as lideranças são acionadas via grupo de WhatsApp para fazer a remoção. Essa medida surtiu efeito e reduziu os acidentes em 2023 na comparação com o ano anterior.

Outra ação foi realizada pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER), com palestras de conscientização nas escolas da comunidade. O departamento também afirma que no trecho de 12 km da PR-473 que corta a TI a sinalização foi recuperada para melhorar a segurança.

“Precisamos de melhor estrutura para via, como uma mureta de proteção para os pedestres, iluminação, mais radares”, reivindica Neoli Kafy Olibio, liderança da comunidade e secretário Municipal Indígena de Nova Laranjeiras. Para ele, medidas de melhoria devem ser discutidas com a comunidade durante o processo de concessão da rodovia, que deve compor o Lote 6 do PR Vias, que ainda aguarda liberação do Tribunal de Contas da União (TCU) para ser leiloado.

A Agência Nacional de Transporte Terrestre (Antt) afirmou que as comunidades são ouvidas durante o processo de licenciamento de obras e com acompanhamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Portanto, a participação dos indígenas não deve ocorrer no processo de leilão, somente quando obras forem realizadas no trecho, com estudos para elaboração do Componente Indígena do licenciamento ambiental.

Em maio deste ano o MPF expediu recomendação para que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e o DER realizassem ações de melhoria da sinalização nos locais de maior incidência de acidentes.

Dos 41 acidentes registrados pelas polícias rodoviária Federal e Estadual, 33 aconteceram a noite. Por isso, a comunidade acredita que uma medida simples de colocar iluminação nos pontos de maior incidência de pedestres pode ajudar a salvar vidas.

Enfrentando o alcoolismo

O tema do alcoolismo não é novo na TI Rio das Cobras. Contudo, não existe atualmente serviços de saúde mental e tratamento para o alcoolismo dos indígenas. A TI Rio das Cobras conta somente com unidades de Atenção Primária mantidos pela Secretaria de Saúde Indígena (SESAI), ligada ao Ministério da Saúde.

Em 2022, um Grupo de Trabalho sobre Saúde Mental chegou a ser instituído pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Litoral Sul, responsável pela área. Contudo, na avaliação das lideranças não tem sido suficientes devido a gravidade dos casos.

Terra Indígena Rio das Cobras: margeada por rodovias com tráfego intenso. Foto: Cléber Moletta Gomes

Ilda Cornélio Bernardo é indígena kaigang e conhece bem a realidade do alcoolismo na TI. Ela foi a primeira graduada da comunidade, se formou em Serviço Social pela Unicentro e começou a atuar como Assistente Social na área em 2009.

“Esse problema vem de muito tempo, o alcoolismo desestrutura as famílias, a nossa sociedade, está afetando até crianças. Estamos trabalhando esse tema nas escolas, mas infelizmente não tem sido suficiente”, lamenta Ilda. Segundo ela, além dos atropelamentos, existe o problema de abandono das famílias, violência doméstica, tudo associado ao abuso de álcool.

Ela aponta o fato da rodovia passar pela TI como uma das causas do abuso do álcool, porque a proximidade e o acesso facilitaram a entrada das bebidas na comunidade.

O serviço de saúde mental é oferecido aos indígenas via Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o único Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) espacializado em álcool e outras drogas da 5ª Regional de Saúde fica em Guarapuava (120 km) e não atende toda a demanda. E quando o atendimento ocorre o indígena é retirado do ambiente familiar. A própria Funai reconheceu que a “remoção do sujeito adoecido do contexto ecológico e cultural do grupo social ao qual pertence para desintoxicação […] se provou insuficiente, ou apenas parcialmente eficaz”. A afirmação foi feita em ofício ao Ministério Público Federal (MPF) que questionou o órgão, em 2021.

Uma demanda das lideranças é a construção de um Caps para cuidar dos indígenas.

“Nós estamos trabalhando em cima da educação pra que a gente possa diminuir esse índice de álcool aqui dentro”, explica o cacique Ângelo. Ele comemora o fato de atualmente uma graduação em Pedagogia Indígena ser oferecida na TI, pela Unicentro, e que novos cursos devem ser instalados.

“Em breve vamos ter muito mais jovens se formando em Pedagogia, Educação Física e outros cursos, isso estamos fazendo pra dar possibilidades aos jovens indígenas”, explica o cacique. A Unicentro, que tem sede em Guarapuava, avalia a abertura de cursos na comunidade, criando uma oferta específica e adequada a realidade indígena.

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