‘Aquarius’ da vida real: família protesta contra construtora que abandonou prédio no Cabral

Paciente de câncer se recusa a vender apartamento e vira símbolo de luta contra "capitalismo selvagem"

Em 1983, Maria Juracy Aires, 69, assistiu à casa dos pais sendo arrastada pela enchente. “Eu me lembro deles vendo aquele patrimoniozinho indo embora, a água levando as portas e janelas”, relembra. Hoje, quando ela entra no seu apartamento na Av. Paraná, no bairro Cabral, em Curitiba, diz que o sentimento é similar.

Sua casa não foi destruída por um desastre ambiental, mas por intervenção humana – ela vem sendo gradualmente depredada desde que a construtora Plaenge comprou todos os outros apartamentos do prédio e os abandonou. 

A aposentada resiste a vender o imóvel porque nutre afeto pelo espaço. Sua história, segundo ela, não está à venda.

Na última segunda (22), o caso foi noticiado pelo jornal Folha de S.Paulo. Maria Juracy, que agora se prepara para começar as sessões de radioterapia e quimioterapia, após ter passado, recentemente, por cirurgia para retirar um tumor da garganta, comemora as centenas de mensagens de encorajamento que recebeu. 

Faixa protesta contra a Plaenge, o “Dr. Abobrinha” da vida de Maria Juracy. Foto: Tami Taketani/Plural

“A maior parte dos comentários falava sobre o quanto o capitalismo é selvagem. Ele não respeita ninguém”, ela comenta. “Eu fico muito feliz, porque no meio desse turbilhão que estou vivendo com o câncer, isso foi um bálsamo. A sede de justiça corre nas minhas veias, parece que é uma parte do meu nutriente na vida.”

Na manhã desta quarta (24), a família instalou uma faixa de 8×2 metros na fachada do prédio, com o texto: “O Dr. Abobrinha não paga o condomínio”. A ideia foi do filho mais velho da aposentada, o técnico judiciário Geraldo Augusto Staub Filho, 40.

“As pessoas da minha geração conhecem o vilão do Castelo Rá-Tim-Bum, o Dr. Abobrinha. Um personagem meio atrapalhado que queria por todos os meios derrubar o castelo onde morava o Nino para construir um arranha-céu”, ele fala.

Na trama, os tios do protagonista Nino se recusavam a vender o imóvel, e Dr. Abobrinha se fantasiava para tentar fazer com que alguém assinasse uma procuração, ou um contrato de venda, disfarçado de outro documento qualquer. 

“Ele tentava forçar os proprietários a vender, sem que essa fosse a intenção deles. Essa é a situação que vive há muitos anos a minha mãe”, observa Geraldo. “Independentemente do que se pensa sobre a cidade, sobre o tipo de habitação que deve existir, o Dr. Abobrinha não pode forçar a minha mãe a vender o castelo dela.”

“Eu era feliz e sabia”

O Conjunto Residencial João Gualberto também carrega consigo um pedaço da história de Curitiba. Construído em 1960, para os funcionários do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC), ele foi inaugurado por Juscelino Kubitschek. No começo, eram seis torres iguais, com oito apartamentos cada. 

Entre os personagens célebres que viveram no local, está o jornalista Luiz Geraldo Mazza, 93. Ele comprou um apartamento no condomínio em 1961 e morou com a esposa no local até 2019, quando os filhos o pressionaram a vender o imóvel. 

Com apartamentos desocupados, prédio passou a ser vandalizado. Foto: Tami Taketani/Plural

Em entrevista, Mazza exalta a qualidade de vida que teve no espaço, que além de ter muita área verde disponível, também ficava próximo dos serviços de saúde. “Eu ia dizer que era feliz e não sabia, mas isso não é verdade. Eu sabia, sim”, diz.

Na década de 1970, o condomínio foi cortado ao meio para a construção da canaleta do expresso, onde passa o biarticulado que liga o Santa Cândida ao Capão Raso. As torres que ficaram do lado esquerdo, quando se olha do Cabral para o centro, foram compradas por uma incorporadora que construiu um prédio de alto padrão no lugar. 

Em 2017, a Plaenge começou a comprar os apartamentos das duas torres que restaram, oferecendo cerca de R$ 350 mil a cada proprietário. 

“O meu pai, por ele, não teria saído de lá. Foi uma luta quando a construtora veio com a proposta. Nós, filhos, insistimos porque o prédio estava ficando desabitado e perigoso. Por ele, ele ia ficar. Foi difícil convencer”, fala Liana Mazza, filha de Geraldo Mazza. 

Maria Juracy também recebeu propostas de compra, mas nunca demonstrou interesse em vender o seu apartamento. Ela prefere desfrutar do imóvel na aposentadoria, dando continuidade ao cultivo do jardim e convivendo com os passarinhos. 

Degradação fabricada 

Maria Juracy viveu no Cabral até 2004, quando precisou se mudar para socorrer a mãe, que morava com ela e já não conseguia mais subir as escadas do prédio. 

O apartamento ficou aos cuidados de seu filho mais velho, Geraldo, e depois do filho do meio, Vinícius, que se mudou para o imóvel quando descobriu que seria pai. Ele, a companheira e o filho viveram lá até 2019.

A última inquilina da aposentada foi a professora Yasmin Aline Cerdeira de Oliveira, 28, que morou no prédio entre 2019 e 2022. Quando ela alugou o apartamento, ainda havia outros dois moradores. Depois, eles também venderam seus imóveis e ela ficou sozinha.

“O sol da tarde era incrível, os cômodos eram espaçosos e fato de o prédio ser de frente para Casa da mulher me dava segurança”, relata Yasmin. “Eu fui muito feliz naquele espaço. Acho que consegui morar em uma região bem boa aqui de Curitiba por um preço acessível, porque os alugueis do Cabral costumam ser caríssimos, fora do meu alcance.”

Enquanto foi locatária, Yasmin tratava da segurança e manutenção do jardim direto com Maria Juracy. A proprietária mandou instalar uma porta de ferro e câmeras de segurança.

Edifício no Cabral e história de Maria Juracy viraram símbolo de crítica ao “capitalismo selvagem”. Foto: Tami Taketani/Plural

Quando Yasmin se mudou, as invasões começaram. Primeiro levaram as câmeras de segurança que Maria Juracy havia mandado instalar, depois a fiação elétrica e o sistema hidráulico. 

Foram vários os boletins de ocorrência registrados ao longo dos anos, sem resultado. Em junho de 2022, quando esteve no prédio, a Polícia Militar disse à aposentada que os invasores eram “moradores de rua” e recomendou a contratação de seguranças particulares. 

Maria Juracy chegou a contratar seguranças a R$300 o dia, mas a médio prazo, não foi capaz de arcar com os gastos sozinha. Ela pediu ajuda em diversas ocasiões, porém, a Plaenge nunca aceitou contribuir com a manutenção do prédio. A única ação concreta da empresa foi mandar lacrar as portas e janelas de seus apartamentos, para impedir a passagem dos invasores, mas o bloqueio também foi destruído. 

Yasmin ainda se entristece quando passa em frente ao edifício. “Ele está acabado, irreconhecível. Quando eu morava lá, já era um prédio antigo, mas o jardim estava sempre bem feitinho, existiam portões, janelas, tudo. Agora está totalmente depredado.”

Em 2023, Maria Juracy entrou na justiça contra a construtora, representada pelo advogado Bruno Meirinho. No processo, que corre na 9ª Vara Cível de Curitiba, eles alegam que a Plaenge está desviando a finalidade dos imóveis ao não destiná-los à moradia. 

Segundo Meirinho, sua cliente quer que a empresa divida as despesas do condomínio com ela, para que o prédio tenha condições de ser habitado novamente. 

Procurada pela reportagem, a Plaenge não quis se manifestar. Porém, no âmbito do processo, argumentou que a manutenção do prédio precisaria ser acordada em assembleia. “Sendo franco: a Autora sabe que não conseguirá fazer prevalecer sua vontade em uma assembleia na qual será minoria”, escreveu a defesa da construtora.

Expulsão

Maria Juracy não é a primeira vítima da gentrificação. O termo foi cunhado pela socióloga Ruth Glass na década de 1960, quando os moradores de um bairro histórico de Londres, na Inglaterra, foram obrigados a deixar a região após sua “revitalização”, pois não tinham mais condições de pagar para estar lá. 

O fenômeno é ainda mais antigo. “Saudosa maloca”, clássico brasileiro de Adoniran Barbosa, lançado em 1951, já lamentava a demolição de uma casa simples para dar lugar a um prédio, ou seja, falava de gentrificação. 

Historicamente, o crescimento das cidades brasileiras empurra as populações de classes mais baixas para as periferias e regiões metropolitanas. 

“A gentrificação remete à segregação socioespacial de áreas urbanas, que pode ocorrer por várias razões, inclusive por causa da especulação imobiliária”, explica a arquiteta e urbanista Adriane Nunes Ferreira, mestra em ciências da cidade.

Este é o caso do Cabral, bairro que nos últimos anos entrou na mira das construtoras. De acordo com o grupo QuintoAndar, o Cabral foi o 3º bairro curitibano mais valorizado pelo mercado imobiliário em 2023. 

Se Maria Juracy vendesse seu apartamento de 95 m² por R$ 350 mil, desembolsaria o triplo do valor para comprar um imóvel similar na vizinhança. O preço do metro quadrado na região custava R$ 10.721 até o fim de 2023, na cotação do Agente Imóvel. 

“Todo mundo gosta de andar num lugar com uma paisagem agradável, com uma calçada em bom estado, com uma boa iluminação, com segurança, e geralmente esses projetos de revitalização são vendidos dessa forma. O que não se fala é qual é a população que vai conseguir acessar esses espaços”, comenta a arquiteta e urbanista Madianita Nunes da Silva, professora da Universidade Federal do Paraná e integrante do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.

Em sua visão, não é somente Maria Juracy que está sendo expulsa de casa. A maior parte da população de Curitiba perde quando uma área que recebeu investimento público para oferecer infraestrutura e qualidade urbana é apropriada pelas grandes construtoras.

“À construtora interessa fazer o empreendimento dela, vender e capitalizar. Acabou aí a relação dela com a cidade e com as pessoas. O poder público deveria estar prezando pelos valores de uso da cidade e defendendo a população”, aponta. 

Dados do último boletim FipeZap, divulgados em março de 2024, mostram que Curitiba é a quinta capital com o metro quadrado mais caro do Brasil. O preço médio de venda de imóveis residenciais na cidade é de R$9.458 mil por metro quadrado.

Não à toa, o Censo Populacional de 2022, do IBGE, indica que Curitiba tem 104 mil domicílios desocupados, enquanto 90 mil pessoas não possuem moradia digna na cidade, conforme pesquisa divulgada neste mês pela Companhia de Habitação do Paraná. 

“Para quem esta cidade vem sendo construída?”, questiona Ferreira. 

“A moradia é a porta de entrada para outros direitos. É um direito constitucional que vem sendo violado.”

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4 comentários em “‘Aquarius’ da vida real: família protesta contra construtora que abandonou prédio no Cabral”

  1. Eu sempre passava em frente a esse condomínio e ficava admirada com todo aquele espaço verde, bem cuidado. Infelizmente, a Curitiba humana que conheci quando cheguei aqui em 98, está se transformando em uma selva de pedras. Perdemos todos, no fim das contas. Quem ganha, são os mesmos de sempre.

  2. Toda a minha solidariedade à Maria Juracy, na amorosa memória dos bonitos dias que compartilhamos -nós e nossas crianças- naquele Castelo Rá-Tim-Bum! Abaixo os Doutores Abobrinhas e seus esquemas predatórios!

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